Professores apontam falhas em um estudo que
indicava uma suposta possibilidade de gatos serem infectados pelo vírus.
Segundo os docentes, não há evidências de que esses animais podem desenvolver
Covid-19
Reprodução/Pixabay/STVIOD/Imagem Ilustrativa
Após um artigo de cientistas da Academia Chinesa de
Ciências Agrícolas (CAAS), que avaliou a possibilidade de gatos serem
contaminados pelo novo coronavírus, agente causador da Covid-19 em humanos,
viralizar, o professor Paulo Eduardo Brandão, do Laboratório de Zoonoses Virais
da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP alertou para uma
série de falhas na metodologia usada e lembrou que não há evidências
suficientes de que o coronavírus possa infectar gatos.
“Se eu fosse revisor e recebesse esse artigo para
revisar, eu negaria a publicação”, disse Brandão ao Jornal da USP.
O artigo – que concluiu, a partir de experimentos,
que gatos podem se infectar e transmitir o vírus a outros felinos, como furões,
e que não encontrou indícios de que cães, porcos, galinhas e patos podem se
contaminar – foi divulgado pela revista Nature, em 1º de abril. A publicação,
porém, não aponta as falhas da pesquisa.
Para piorar o cenário, um laboratório veterinário
brasileiro passou a oferecer, na quinta-feira (2), testes para diagnóstico da
doença em gatos, “baseados nas fracas evidências trazidas pelo artigo”, segundo
Brandão.
O professor, que é especialista em estudos de
vírus, entre eles os da família dos coronavírus, recebeu o apoio
da professora Aline Santana da Hora, do Departamento de Medicina
Veterinária Preventiva da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Juntos, eles escreveram um texto com apontamentos
sobre as falhas do artigo, que foi enviado para diversas pessoas, com o intuito
de auxiliar colegas da área de medicina veterinária.
O artigo chinês descreve testes nos quais cinco
gatos domésticos de oito meses de idade foram explorados pela ciência e
adoecidos através da inoculação intranasal de uma alta carga viral de
SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Infectados, eles foram deixados próximos de
outros gatos saudáveis, dos quais, posteriormente, os cientistas recuperaram o
RNA do vírus, o que fez com que eles considerassem “que os gatos positivos
poderiam infectar outros gatos”.
Além do número de gatos explorados no teste ter
sido considerado diminuto por Aline da Hora e Paulo Brandão, o professor
afirmou ainda que “eles acharam o RNA viral, mas isso não pode ser
interpretado como sendo o vírus se replicando, de fato, no organismo dos
gatos”.
“Se eu tomar via oral uma dose do coronavírus que
infecta cães, mas não infecta humanos, você vai achar o RNA desse coronavírus
no meu organismo, mas porque eu ingeri e não pelo vírus estar se replicando”,
explicou o professor. Neste caso, o RNA viral pode significar apenas um foco do
próprio material inoculado, mas inativado, sem se reproduzir. Material que
poderia se disseminar entre outros animais, mas sem infectá-los.
Além disso, os exames feitos nos gatos para
comprovar que foram infectados são insuficientes. Segundo Brandão, além dos
procedimentos realizados (RT-PCR e histologia), seria necessário submeter os
gatos a outros exames, como a imunohistoquímica e o isolamento do vírus ativo
através de um exame de sangue ou do swab, técnica que consiste em inserir um
cotonete no canal nasal para coleta de secreção.
“Os cientistas fizeram o swab nos outros animais,
mas não fizeram nos gatos porque eles estavam muito agressivos e não
conseguiram colher amostras adequadas. Mas há técnicas para fazer esse tipo de
coleta nesses animais”, disse o professor ao Jornal da USP.
O desenho experimental descrito no artigo, na
opinião dos professores, também é bastante falho. “Não foram apresentados dados
laboratoriais que comprovassem a saúde geral dos gatos utilizados no
experimento, assim como o status desses animais para as principais viroses
felinas que poderiam contribuir para um quadro de imunossupressão e consequente
interferência nos resultados da inoculação experimental”, descreve o texto dos
professores.
A origem dos gatos explorados no experimento também
está meio obscura, na opinião de Brandão. Eles vieram de uma espécie de gatil e
não de um biotério, de onde costumam vir os animais criados para serem
explorados, adoecidos e mortos pela ciência. Segundo o professor, não se sabe
ao certo a origem genética dos animais do estudo chinês.
A ausência de sinais clínicos por parte dos gatos
pós inoculação experimental também é apontada por Aline da Hora e
Brandão. “Nem ao menos foi identificada lesão tecidual ou material
genético de SARS-CoV-2 nos pulmões, fato que é bastante intrigante, já que o
vírus causa lesões graves em tecido pulmonar de humanos”, afirmaram.
O artigo chinês também são foi submetido à revisão
de pares, o chamado peer review. “É de conhecimento que todos os artigos
científicos, antes de serem publicados, normalmente passam pela revisão de, no
mínimo, dois experts da área correlata ao trabalho. O que não aconteceu com
este trabalho”, diz o texto dos pesquisadores brasileiros.
Além disso, o artigo foi disponibilizado no
bioRxiv.org, um repositório de artigos ainda não publicados em revistas
científicas e, segundo Brandão, a qualidade dos trabalhos dispostos no site é
variada.
O professor lembrou ainda que uma das consequências
da viralização do artigo é o abandono de gatos, que é crime. “Já estava
acontecendo com cães, por suspeita de que fossem hospedeiros. Agora isso pode
ter uma repercussão no bem-estar animal. Se começarem a abandonar cães e gatos
nas ruas, a população deles vai aumentar e podem voltar também algumas
zoonoses, como a raiva”, disse ao Jornal da USP.
Os professores, no texto escrito por eles,
comentaram ainda o caso do gato que supostamente havia sido diagnosticado com
coronavírus na Bélgica. “Neste caso, os dados foram apresentados em forma de
notícias. Portanto, não está bem esclarecida qual foi a metodologia de
diagnóstico de SARS-CoV-2 e nem se outros exames foram realizados para o
estabelecimento de um diagnóstico diferencial”, escreveram.
Segundo o texto dos docentes, “há recomendações de
que os pacientes com suspeita ou confirmados para Covid-19 permaneçam isolados
do contato com animais. Tal recomendação é sempre preconizada para qualquer
doença infecciosa emergente, até que informações científicas determinem e
embasem a suspensão ou não dessa recomendação”.
A respeito da publicação na Nature, Brandão contou
que enviou um e-mail ao repórter responsável pela notícia e que o profissional
afirmou que conversaria sobre o assunto com os editores da revista.
Fonte : anda.jor.br
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