Foto: Cristobal Olivares/The New York Times
O que todos concordam – até mesmo aqueles que viveram ou trabalharam por muitos anos na maior prisão do Chile – é que os gatos chegaram aqui primeiro.
Eles passaram décadas perambulando pelas muralhas da prisão, tomando banho de sol no telhado de metal e deslizando entre celas lotadas com dez homens cada. Para os agentes penitenciários, eram só uma peculiaridade, quase sempre ignorados. Mas os gatos continuaram se multiplicando às centenas.
Então os funcionários da prisão perceberam outra coisa: os felinos residentes não eram bons apenas para o problema dos ratos. Também eram bons para os presos.
“Eles são nossos companheiros”, disse Carlos Nuñez, um prisioneiro careca exibindo do outro lado das grades uma gata malhada de 2 anos que ele chamava de Fea – ou seja, Feia. Ao cuidar de vários gatos durante sua sentença de 14 anos por roubo domiciliar, ele disse que descobriu a essência especial dos felinos, em comparação com, digamos, um colega de cela ou até mesmo um cachorro.
“Um gato faz você se preocupar com ele, dar comida, cuidar dele, dar uma atenção especial”, disse. “Quando estávamos lá fora e livres, nunca fazíamos esse tipo de coisa. Nós descobrimos tudo isso aqui dentro”.
Conhecida simplesmente como “la Peni”, a principal penitenciária de Santiago, capital do Chile, tem 180 anos de existência e há muito tempo é conhecida como um lugar onde os homens vivem em jaulas e os gatos vagueiam livres. O que agora se sabe com mais clareza é o efeito positivo dos cerca de trezentos gatos da prisão sobre os 5.600 detentos humanos.
A presença dos felinos “mudou o humor dos presidiários, regulou seu comportamento e fortaleceu seu senso de responsabilidade com os deveres, principalmente o cuidado com os animais”, disse a diretora do presídio, a coronel Helen Leal González, que tem dois gatos em casa, Reina e Dante, e uma coleção de estatuetas de gatos em cima da mesa.
“As prisões são lugares hostis”, acrescentou ela, de coque apertado, cassetete e botas de combate. “Então é claro que, quando você vê um animal dando carinho e gerando esses sentimentos positivos, logicamente vem uma mudança de comportamento, uma mudança de mentalidade”.
Os presos adotam os gatos informalmente, trabalham juntos para cuidar deles, compartilham comida e camas e, em alguns casos, constroem casinhas para eles. Em troca, os gatos fornecem algo inestimável numa prisão conhecida pela superlotação e pelas condições precárias: amor, carinho e aceitação.
“Às vezes você fica deprimido, e aí é como se ela sentisse que você está meio deprimido”, disse Reinaldo Rodriguez, 48 anos, que deve ficar preso até 2031 por uma condenação por porte de arma de fogo. “Ela vem e se cola em você. Toca o rosto dela no seu”.
A parceria entre animais e criminosos condenados não é novidade. Durante a Segunda Guerra Mundial, prisioneiros de guerra em New Hampshire adotaram animais selvagens como animais domésticos – até mesmo, segundo relatos, um filhote de urso.
Os programas oficiais para criar laços entre prisioneiros e animais ficaram mais comuns no final da década de 1970 e, depois de resultados consistentemente positivos, se expandiram em todo mundo, em países como Japão, Países Baixos e Brasil.
Esses programas se tornaram particularmente populares nos Estados Unidos. No Arizona, detentos treinam cavalos selvagens para patrulhar a fronteira dos Estados Unidos com o México. Em Minnesota e Michigan, prisioneiros treinam cães para cegos e surdos. E em Massachusetts, detentos ajudam a cuidar de animais selvagens feridos ou doentes, como falcões, coiotes e guaxinins.
Já se comprovou repetidas vezes que conectar presos e cães “diminui a reincidência, melhora da empatia, aprimora as habilidades sociais e gera um relacionamento mais seguro e positivo entre detentos e agentes penitenciários”, disse Beatriz Villafaina-Domínguez, pesquisadora na Espanha que analisou vinte estudos sobre esses programas.
Os cães têm sido o animal mais utilizado nas prisões, seguidos pelos cavalos. Na maioria dos programas, os animais são trazidos aos reclusos, ou vice-versa. No Chile, porém, os presos desenvolveram uma ligação orgânica com os gatos que vivem com eles.
Mas houve um tempo em que o relacionamento não era tão positivo. Uma década atrás, a população de gatos crescia descontroladamente e muitos gatos adoeciam – chegaram até mesmo a desenvolver uma infecção contagiosa que deixou alguns gatos cegos. A situação “estava estressando os detentos”, disse Carla Contreras Sandoval, assistente social da prisão, que tem duas tatuagens de gato.
Então, em 2016, as autoridades penitenciárias finalmente permitiram que voluntários cuidassem dos gatos. Desde então, uma organização chilena chamada Fundação Felinos vem trabalhando com a Humane Society International para coletar sistematicamente todos os gatos para tratá-los e castrá-los. Quase todos já foram tratados.
O sucesso do programa se deve pelo menos em parte aos presidiários, disse Sandoval. Os presos recolhem gatos que precisam de cuidados e os levam aos voluntários.
Numa tarde semanas atrás, quatro mulheres chegaram à prisão com caixas transportadoras de gatos, à procura de vários felinos, entre eles Lucky, Aquila e Dropón e seus seis filhotes, além de Fea, a gata de Nuñez.
O pátio estava caótico, lotado para uma partida de futebol entre detentos, mas os presos educadamente abriram caminho para as mulheres.
Logo depois, homens embalando gatos em braços tatuados desceram as escadas que davam para o pátio e entregaram os animais através das grades às voluntárias. Denys Carmona Rojas, 57 anos, prisioneiro que cumpre oito anos sob acusação de porte de arma, parou para acariciar uma ninhada de gatinhos dentro da caixa. Ele disse que tinha ajudado a criar muitos gatinhos na sua cela e relembrou a vez em que dera leite especial a uma ninhada que tinha perdido a mãe no parto.
“A gente se dedica aos gatos. Cuidamos deles, ficamos de olho neles, damos amor”, disse ele, sorrindo e mostrando a falta dos dentes da frente. “A sensação que vem daí não tem nada a ver com coisas ruins, cara”.
Fonte: Estadão
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