Por Dennis
Zagha Bluwol
Um dos papéis fundamentais da escola
é ajudar os alunos a desenvolverem lógica. Sabemos que há lógicas diversas, ou
seja, formas diversas de organizar o raciocínio, mas para o caso do que
queremos discutir aqui, basta, porém, o arquiclássico esquema do silogismo
aristotélico, básico para a estruturação do pensamento de qualquer pessoa com
uma educação minimamente consistente nos últimos 2300 anos:
a. Uma premissa (maior)
b. Outra premissa (menor)
c. Portanto… (conclusão)
b. Outra premissa (menor)
c. Portanto… (conclusão)
Nós, defensores dos direitos dos
animais, costumamos partilhar a compreensão e a valorização de algumas
sequências lógicas deste tipo. Por exemplo:
a. Todo ente senciente é capaz de
sofrer;
b. Animais não humanos são sencientes;
c. Logo, animais não humanos são capazes de sofrer.
b. Animais não humanos são sencientes;
c. Logo, animais não humanos são capazes de sofrer.
Outra:
a. Causar sofrimento a algum ente é
imoral;
b. Nossas atitudes para com os animais causam sofrimento;
c. Logo, nossas atitudes para com os animais são imorais.
b. Nossas atitudes para com os animais causam sofrimento;
c. Logo, nossas atitudes para com os animais são imorais.
Outra:
a. Obrigar um ente livre a viver em
função de outro é escravidão;
b. Animais são entes livres obrigados a nos servir;
c. Logo, animais são escravizados por nós.
b. Animais são entes livres obrigados a nos servir;
c. Logo, animais são escravizados por nós.
Ou ainda:
a. Escravizar um ente é imoral;
b. Animais são escravizados por nós;
c. Logo, nossa relação com os animais é imoral.
b. Animais são escravizados por nós;
c. Logo, nossa relação com os animais é imoral.
E por aí vai…
O silogismo aristotélico, exposto
pelo filósofo no século IV a.C. e presente em qualquer proposta educacional que
faça o mínimo de sentido, ainda não chegou à Brasília. Este mês mais um caso de
assalto à lógica e à decência foi a nós concedido por nosso podre Congresso
Nacional. Foi aprovada em 1º turno na Câmara dos Deputados uma proposta de
emenda constitucional (PEC 304/2017, advinda da PEC 50/2016 do Senado) que
acrescenta uma informação ao artigo 225 da Constituição Federal, que trata do
meio-ambiente. Em seu §1º, que dita as incumbências do poder público para a
preservação ambiental, há o inciso VII, onde diz-se: “VII – proteger a fauna e
a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a
crueldade”. A modificação acrescenta, sobre este final, tal ressalva:
“§ 7º Para fins do disposto na parte
final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas
desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais –
conforme o § 1º do art. 215 – registradas como bem de natureza imaterial
integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por
lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”
Ou seja, criaram uma nova lógica,
baseada em uma mentira:
a. Vaquejada é considerada patrimônio
cultural brasileiro.
b. Ser patrimônio cultural significa não causar sofrimento aos animais.
c. Logo, a vaquejada não causa sofrimento aos animais.
b. Ser patrimônio cultural significa não causar sofrimento aos animais.
c. Logo, a vaquejada não causa sofrimento aos animais.
A mentira, ou melhor, a canalhice,
está em associar artificialmente duas questões sem relação: ser patrimônio
cultural e se causa ou não sofrimento aos animais. Isto é completamente insano!
Fico imaginando se a moda pega e qualquer coisa que seja comum em nossa bela cultura torne-se, por força da lei (imprimatur!), algo que não cause sofrimento e deva ser eticamente aceitável. Pense nos exemplos e vomite.
Fico imaginando se a moda pega e qualquer coisa que seja comum em nossa bela cultura torne-se, por força da lei (imprimatur!), algo que não cause sofrimento e deva ser eticamente aceitável. Pense nos exemplos e vomite.
A PEC tenta justificar-se sobre esta
questão, ou melhor, tenta blindar tal canalhice, dizendo que tais práticas
devem ser “regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos
animais envolvidos”. Sobre isto, vale ler a justificativa escrita na proposta
de tal PEC quando ainda estava no Senado, onde foi aprovada com o nome de
50/2016. Tal justificativa trata-se, em suma, de outro desvario lógico, outra
insanidade moral: “A vaquejada, assim como outras manifestações culturais populares,
passa a constituir patrimônio cultural brasileiro e merecer proteção especial
do Estado quando registrada em um dos quatro livros discriminados no Decreto nº
3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de
Natureza Imaterial. Nessa hipótese, acaso regulamentada de forma a garantir a
integridade física e mental dos animais envolvidos sem descaracterizar a
própria prática, a vaquejada atenderá aos mandamentos exarados pelo Tribunal
Constitucional por ocasião do julgamento da ADI 4983”.
Em suma, retirando os véus que visam
ocultar a podridão da proposta, o que temos é o puro assassinato da lógica e da
moralidade, pois é impossível associar qualquer coisa que minimamente se
assemelhe a assegurar o bem-estar de animais com qualquer coisa que se
assemelhe minimamente à vaquejada, prática onde duas pessoas à cavalo cercam um
boi desesperado visando puxá-lo pelo rabo e torcê-lo até que o boi caia ao
chão.
Não é difícil entender os reais
interesses por trás desta aberração lógico-moral. Os discursos dos próprios
envolvidos na tramoia os deixam evidentes. No site da Câmara dos Deputados, no
próprio dia 10/05/2017, data da aprovação em primeiro turno desta PEC, uma
reportagem nos diz que “para o relator da PEC na comissão especial, deputado
Paulo Azi (DEM-BA), se a vaquejada fosse banida, além da cultura de um povo,
teria prejuízo injustificável para toda uma cadeia produtiva, condenando
cidades e microrregiões ao vazio da noite para o dia”. E prossegue o nobre
deputado: “A Associação Brasileira de Vaquejada (Abvaq) relata que a atividade
movimenta R$ 600 milhões por ano, gera 120 mil empregos diretos e 600 mil
empregos indiretos. Cada prova de vaquejada mobiliza cerca de 270
profissionais, incluídos veterinários, juízes, inspetores, locutores,
organizadores, seguranças, pessoal de apoio ao gado e de limpeza de
instalações”. Em que, nem que seja de longe, esta justificativa conversa com o
fato de algo gerar ou não gerar sofrimento aos animais?
(Comentário paralelo: já perceberam
que sempre há veterinários nas práticas que exploram animais e causam-lhes
sofrimento?).
Segue a ilustrativa reportagem:
“Ouvimos especialistas, veterinários que nos trouxeram dados científicos.
Existem provas científicas de que essas atividades em nenhum momento provocam
maus-tratos”, relatou Azi. Provas científicas de que duas pessoas montadas em
cavalos cercarem um boi puxarem seu rabo de modo que caia ao chão não é
maltratar alguém? Nem ficção científica isto é, considerando que este gênero
costuma apresentar fantasias e reflexões muitas vezes geniais e profundas, e
não apenas aquele velho argumento de boteco falido do tipo “é cientificamente
comprovado”, argumento este feito sem ciências e sem comprovações. Estou
ansioso por receber as revistas científicas qualificadas nas quais tais
descobertas inovadoras foram apresentadas em primeira mão.
O deputado Danilo Forte (PSB-CE), na
sessão que aprovou a Vaquejada em 1º turno, trouxe uma bela contribuição à
construção da cultura brasileira quando emitiu, diz-se que pela boca: “Essa PEC
é para resguardar a história do País, a bravura do vaqueiro e do homem
nordestino. E também para reavivar uma força econômica muito importante para o
povo brasileiro”. Este é o valor que queremos para o cidadão brasileiro? Ter a
“bravura” de cercar – em dupla – um animal aterrorizado, sobre cavalos, e
agredi-lo sem motivo? Alguém com tal visão de humanidade e de relação entre
humanidade e outros animais tem o mínimo de decência moral para assumir um
cargo em um Congresso Nacional? (perdão pela pergunta ingênua. É claro que tal
Congresso é feito justamente por e para pessoas indecentes). Mais um ótimo
exemplo do refinado senso lógico de nossos parlamentares: bravura é sinônimo de
covardia.
E o deputado João Marcelo Souza
(PMDB-MA), talvez olhando para um espelho, fez a profunda análise de que os
deputados que falam em maus-tratos são hipócritas: “São deputados do Sul, do
Sudeste, que nada entendem de vaquejada. Isso se chama hipocrisia. Vocês não
conhecem a cultura do Nordeste. Nunca se quis fazer mal a animal nenhum”.
Clamor à alguma identidade regional como forma de ocultar questões realmente
éticas é uma marca constante e antiga da humanidade.
Tais exemplos de fala, que poderiam
prosseguir, são já suficientes para ter-se um quadro do nível argumentativo de
pessoas que possuem o poder de legislar sobre questões éticas.
Já que o sofrimento dos animais é
decorrente da existência de um sistema nervoso e de uma consciência, e não do
status social de uma prática da qual são forçados a participar, é tão óbvio o
erro lógico e moral da afirmação aprovada pelo Senado e agora, em 1º turno,
pela Câmara, é tão óbvia a estupidez da pretensa lógica argumentativa dos
nobres congressistas, que até escrever sobre o assunto é fonte inesgotável de
enjoo. A náusea parece infindável.
Fonte: anda.jor.br (
foto: divulgação )
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