“Espero que todo
aquele que procurar ter um pingo modelo, que cuide bem dele. Deve cuidá-lo com
desvelo, e deve também impedir que batam nele, ou que o joguem no chão”,
escreveu José Hernández no capítulo X de La Vuelta del Martín Fierro.
Como Hernández, para
os protecionistas não existe tradição que valha se houver maus-tratos de
animais. Em tempos de empatia e consciência pela natureza, os defensores dos
direitos dos animais avançam em uma luta que envolve o Estado como regulador e
controlador de quem maltrata, mesmo que isso signifique reformular ou
reinventar antigas tradições.
Com este carimbo, o município de Luján, na Argentina, anunciou
em meados de agosto o fim da chamada “Romaria Gaúcha” que se realizava há 76
anos na última semana de setembro e uma semana antes da peregrinação a pé.
A façanha, que
começou a ser celebrada em 7 de outubro de 1945, envolvia a mobilização de
centenas de camponeses montados a cavalo para o Santuario de la Virgen de
Luján, na cidade de Buenos Aires de mesmo nome. Vestidos com as roupas típicas
do gaúcho (figura típica do campo dos séculos XVIII e XIX), crianças, jovens,
adultos e até famílias inteiras chegavam ao santuário montados em cavalos que
viajavam por horas e dias, também carregando em muitas ocasiões os enfeites
especiais para a ocasião. Em 2005, o evento foi homologado por decreto
provincial.
“Esta peregrinação contou desde sua origem com os centros
tradicionalistas da região e vários círculos crioulos como El Rodeo e Martín
Fierro, pela proximidade com Luján”, conforme habitantes do município chefiado
pelo prefeito Leonardo Boto. “Com o passar dos anos, esta bela tradição
espalhou-se por áreas mais remotas e tornou-se uma amostra da fé nacional, mas
com as mudanças urbanas e sociais, tornou-se também um risco para os
cavaleiros, animais e quem circula regularmente por estes percursos”, explica o
comunicado da prefeitura.
“Todas as pessoas envolvidas na organização deste evento
tradicional concordaram que não se poderia continuar da mesma forma”, disse
Boto durante encontro que manteve com representantes dos círculos crioulos que
organizam a Romaria Gaúcha, protetores de animais e forças de segurança. Para o
presidente local, “chegou a hora de se adaptar às novas demandas e reconverter
a atividade em uma proposta que celebre a fé e as tradições, mas não prejudique
os animais ou os vizinhos de Luján”.
É que nos últimos 30
anos a tradição gaúcha “saiu cada vez mais do controle”, garantiu Gabriela
Rosas, diretora da organização Voluntarios por los Caballos (VPC), com grande
presença no interior de Buenos Aires. Em diálogo com a AIRE, a ativista
recordou das “dezenas de cavalos mortos ou moribundos que jazem no caminho”
percorrido até o Santuario de la Virgen.
Durante 10 anos, grupos de protecionistas foram autorizados a
instalar postos de controle em diferentes pontos de acesso à cidade de Luján
durante a celebração da Romaria Gaúcha para verificarem o estado dos cavalos.
“Assim começou-se a processar casos de cavalos maltratados, de acordo com a Lei
Sarmiento (14.346), e obrigar os animais a se hidratarem, para que pudessem
descansar e comer”, disse a mulher que preside a ONG que resgata cavalos
vítimas de violência.
Mas a verdade é que
os postos de controle atuavam sobre um animal já moribundo ou agredido, ao
invés de impedir esse estado. Ano após ano, “resgatamos cavalos feridos, pôneis
sem ferradura, raquíticos, exaustos, éguas prenhes, potros aleijados,
mutilados, sem olhos …” disse Rosas, enquanto os voluntários e veterinários
tratavam incessantemente os animais “morrendo de exaustão, desidratados ou
feridos em acidentes de trânsito”. “Alguns até morreram em nossos braços”,
disse ele. É que a homenagem tradicional popularizou-se em uma área geográfica
cada vez mais ampla, atraindo a visita de cidadãos que percorriam a cavalo mais
de 100 quilômetros de Quilmes, La Plata, Lomas de Zamora e outros municípios da
Grande Buenos Aires.
Mas a agonia não acabou quando chegamos a Luján. A comemoração
de mais de 70 anos indicava que, já na etapa próxima ao Santuário, os cavalos
deveriam ser expostos a competições como corridas e circunferências, mas também
eram produto de operações de troca, aposta ou venda, segundo denúncia das
organizações protecionistas com as quais o governo municipal conversou. “Depois
disso, os cavalos tinham que voltar aos pontos de origem. Mesmo semanas depois,
continuamos a encontrar cadáveres… um desfile de horror”, disse Rosas.
O fim da Romaria
Gaúcha foi, para os protecionistas, “o corolário de um desastre crônico”. A
portaria que suspende a peregrinação a cavalo ao Santuario de la Virgen de
Luján foi “instituída com a cúria e os dois centros organizadores
tradicionalistas, juntamente com o Executivo, posteriormente endossada pela
legislatura e aplaudida por todos os municípios que tiveram de suportar o
desastre”, expressou Gabriela.
Desde a entrada em vigor da regulamentação, o Município de Luján
divulgou um comunicado em seu site e redes sociais que recebeu a rejeição dos
setores mais conservadores ou tradicionalistas. “A partir deste ano não será
realizada a Romaria a Cavalo ao Santuario de la Virgen Luján”, alertou. Assim,
o evento que estava programado todos os anos para os dias 25 e 26 de setembro
foi suspenso “para cuidar da saúde dos animais, bem como para proteger a
segurança dos peregrinos e vizinhos”. O governo, que também impôs a proibição
da tração com animais em todo o distrito de Luján (Portaria Municipal nº
1285/75), lembrou que “tal modalidade de transporte não será permitida nem
mesmo em animais montados”. O não cumprimento da regulamentação acima
mencionada implica a aplicação de multas e a retenção dos animais.
Longe de reprimir os
costumes gaúchos, o município propôs substituir o “desfile do horror” por uma
semana comemorativa em homenagem à lendária primeira demonstração de fé, com
desfile tradicionalista e atividades culturais.
A adaptação a novos paradigmas também implica forte oposição. De
fato, ONGs protecionistas e o próprio município de Luján alegaram ter recebido
ameaças pela suspensão da famosa marcha dos animais. Mas a grande maioria dos
moradores dessa cidade está disposta a erradicar as práticas cruéis e
anacrônicas, como afirma a Prefeitura, mesmo que isso signifique repensar e
reformular costumes que até o próprio Martín Fierro rejeitaria.
Por Mavi Martínez Sichar / Tradução de Alice Wehrle Gomide
Fonte e foto: AireDigital
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