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terça-feira, 12 de outubro de 2021

Luján disse basta de maus-tratos aos animais em romaria e pôs fim a uma tradição de mais de 70 anos

 


“Espero que todo aquele que procurar ter um pingo modelo, que cuide bem dele. Deve cuidá-lo com desvelo, e deve também impedir que batam nele, ou que o joguem no chão”, escreveu José Hernández no capítulo X de La Vuelta del Martín Fierro.

Como Hernández, para os protecionistas não existe tradição que valha se houver maus-tratos de animais. Em tempos de empatia e consciência pela natureza, os defensores dos direitos dos animais avançam em uma luta que envolve o Estado como regulador e controlador de quem maltrata, mesmo que isso signifique reformular ou reinventar antigas tradições.

Com este carimbo, o município de Luján, na Argentina, anunciou em meados de agosto o fim da chamada “Romaria Gaúcha” que se realizava há 76 anos na última semana de setembro e uma semana antes da peregrinação a pé.



A façanha, que começou a ser celebrada em 7 de outubro de 1945, envolvia a mobilização de centenas de camponeses montados a cavalo para o Santuario de la Virgen de Luján, na cidade de Buenos Aires de mesmo nome. Vestidos com as roupas típicas do gaúcho (figura típica do campo dos séculos XVIII e XIX), crianças, jovens, adultos e até famílias inteiras chegavam ao santuário montados em cavalos que viajavam por horas e dias, também carregando em muitas ocasiões os enfeites especiais para a ocasião. Em 2005, o evento foi homologado por decreto provincial.

“Esta peregrinação contou desde sua origem com os centros tradicionalistas da região e vários círculos crioulos como El Rodeo e Martín Fierro, pela proximidade com Luján”, conforme habitantes do município chefiado pelo prefeito Leonardo Boto. “Com o passar dos anos, esta bela tradição espalhou-se por áreas mais remotas e tornou-se uma amostra da fé nacional, mas com as mudanças urbanas e sociais, tornou-se também um risco para os cavaleiros, animais e quem circula regularmente por estes percursos”, explica o comunicado da prefeitura.



“Todas as pessoas envolvidas na organização deste evento tradicional concordaram que não se poderia continuar da mesma forma”, disse Boto durante encontro que manteve com representantes dos círculos crioulos que organizam a Romaria Gaúcha, protetores de animais e forças de segurança. Para o presidente local, “chegou a hora de se adaptar às novas demandas e reconverter a atividade em uma proposta que celebre a fé e as tradições, mas não prejudique os animais ou os vizinhos de Luján”.



É que nos últimos 30 anos a tradição gaúcha “saiu cada vez mais do controle”, garantiu Gabriela Rosas, diretora da organização Voluntarios por los Caballos (VPC), com grande presença no interior de Buenos Aires. Em diálogo com a AIRE, a ativista recordou das “dezenas de cavalos mortos ou moribundos que jazem no caminho” percorrido até o Santuario de la Virgen.

Durante 10 anos, grupos de protecionistas foram autorizados a instalar postos de controle em diferentes pontos de acesso à cidade de Luján durante a celebração da Romaria Gaúcha para verificarem o estado dos cavalos. “Assim começou-se a processar casos de cavalos maltratados, de acordo com a Lei Sarmiento (14.346), e obrigar os animais a se hidratarem, para que pudessem descansar e comer”, disse a mulher que preside a ONG que resgata cavalos vítimas de violência.

Mas a verdade é que os postos de controle atuavam sobre um animal já moribundo ou agredido, ao invés de impedir esse estado. Ano após ano, “resgatamos cavalos feridos, pôneis sem ferradura, raquíticos, exaustos, éguas prenhes, potros aleijados, mutilados, sem olhos …” disse Rosas, enquanto os voluntários e veterinários tratavam incessantemente os animais “morrendo de exaustão, desidratados ou feridos em acidentes de trânsito”. “Alguns até morreram em nossos braços”, disse ele. É que a homenagem tradicional popularizou-se em uma área geográfica cada vez mais ampla, atraindo a visita de cidadãos que percorriam a cavalo mais de 100 quilômetros de Quilmes, La Plata, Lomas de Zamora e outros municípios da Grande Buenos Aires.



Mas a agonia não acabou quando chegamos a Luján. A comemoração de mais de 70 anos indicava que, já na etapa próxima ao Santuário, os cavalos deveriam ser expostos a competições como corridas e circunferências, mas também eram produto de operações de troca, aposta ou venda, segundo denúncia das organizações protecionistas com as quais o governo municipal conversou. “Depois disso, os cavalos tinham que voltar aos pontos de origem. Mesmo semanas depois, continuamos a encontrar cadáveres… um desfile de horror”, disse Rosas.

O fim da Romaria Gaúcha foi, para os protecionistas, “o corolário de um desastre crônico”. A portaria que suspende a peregrinação a cavalo ao Santuario de la Virgen de Luján foi “instituída com a cúria e os dois centros organizadores tradicionalistas, juntamente com o Executivo, posteriormente endossada pela legislatura e aplaudida por todos os municípios que tiveram de suportar o desastre”, expressou Gabriela.

Desde a entrada em vigor da regulamentação, o Município de Luján divulgou um comunicado em seu site e redes sociais que recebeu a rejeição dos setores mais conservadores ou tradicionalistas. “A partir deste ano não será realizada a Romaria a Cavalo ao Santuario de la Virgen Luján”, alertou. Assim, o evento que estava programado todos os anos para os dias 25 e 26 de setembro foi suspenso “para cuidar da saúde dos animais, bem como para proteger a segurança dos peregrinos e vizinhos”. O governo, que também impôs a proibição da tração com animais em todo o distrito de Luján (Portaria Municipal nº 1285/75), lembrou que “tal modalidade de transporte não será permitida nem mesmo em animais montados”. O não cumprimento da regulamentação acima mencionada implica a aplicação de multas e a retenção dos animais.

Longe de reprimir os costumes gaúchos, o município propôs substituir o “desfile do horror” por uma semana comemorativa em homenagem à lendária primeira demonstração de fé, com desfile tradicionalista e atividades culturais.



A adaptação a novos paradigmas também implica forte oposição. De fato, ONGs protecionistas e o próprio município de Luján alegaram ter recebido ameaças pela suspensão da famosa marcha dos animais. Mas a grande maioria dos moradores dessa cidade está disposta a erradicar as práticas cruéis e anacrônicas, como afirma a Prefeitura, mesmo que isso signifique repensar e reformular costumes que até o próprio Martín Fierro rejeitaria.

Por Mavi Martínez Sichar / Tradução de Alice Wehrle Gomide

Fonte e foto: AireDigital

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