Em menos de duas semanas de estado de emergência em
Portugal, a Animais de Rua já recolheu 20 gatos dóceis em colónias. O abandono
de animais em tempo de pandemia é uma das preocupações desta associação, que
fala numa situação dramática. Os alimentos começam
a escassear e as esterilizações habituais nesta época não vão poder ser feitas,
sendo previsível um descontrolo do número de animais errantes.
Maria Pinto Teixeira recorda o básico: “Os animais
domésticos não têm qualquer capacidade de sobreviver nas ruas.” A presidente da
Animais de Rua nota a existência de uma “ilusão” por parte de alguns
proprietários: “Pensam que um gato doméstico vai ficar bem numa colónia porque
há alimento, mas é ilusório. Estão à mercê de todos os perigos e dos gatos de
rua, que são muito territoriais.”
A Animais de Rua conseguiu colocar em Famílias de
Acolhimento Temporário vinte gatos abandonados nos últimos dias, mas diz que
não tem capacidade para acolher mais nenhum. “E como não conseguimos
recolhê-los, o fim é a morte”, aponta sem rodeios. O apelo é — como sempre, mas
mais do que nunca — para que não se abandonem os animais. E para aqueles que
possam estar assustados com a doença e notícias de animais com covid-19, como
terá acontecido na China, Maria Pinto Teixeira recorda: “Mesmo aí, a suspeita
de contágio foi sempre de pessoas para animais e não o contrário. Não há nada a
temer.”
À União Zoófila “não têm chegado muitos contactos”
de apoio a animais abandonados nesta altura de pandemia. A presidente da
associação, Luísa Barroso, arrisca mesmo dizer que, “no cenário de
confinamento” em que parte da população está, “mais importante se torna estar
na presença de animais, sejam eles quais forem” — um cão, um gato, um
periquito, uma pomba.
A quem estiver a passar por dificuldades
financeiras, motivadas pela paragem de muitas actividades por causa da
pandemia, e a ponderar deixar o seu animal na rua, Luísa Barroso deixa um
apelo: “Podem informar-se junto de associações e pedir ajuda, sobretudo para
alimentação”. Ainda que esta seja, no momento, um dos grandes desafios das
associações.
Cuidadores idosos recolhidos, problema
aumentado
Uma semana antes de ser decretado estado de
emergência pelo Presidente da República, Luísa Barroso tomou a decisão de
fechar as instalações da União a Zoófila, em Lisboa, ao público. Continuaram os
funcionários, com “as mãos preciosas” de voluntários, e ainda os padrinhos,
“que já conhecem as regras de segurança para poderem passear os cães”.
Com o fecho de portas, os donativos, sobretudo em
géneros, não têm chegado como era habitual. E isso pode ser “dramático”, diz a
presidente. “Os donativos são o que nos permite pagar tudo o que sejam despesas
extra — cirúrgicas, veterinárias, internamentos, análises. E acaba por nos
complicar um bocado a vida.”
Notaram logo a falta de areia para os gatos e de
produtos de limpeza, lixívia, detergentes. Em relação a alimentos, ainda há
algumas reservas, mas que se esgotarão se os donativos desaparecerem por
completo.
A alimentação dos animais de colónias controladas é
também um “desafio” neste momento. A União Zoófila continua a ajudar as
colónias de gatos com que costuma trabalhar, mas com as recomendações de
isolamento para conter a propagação da covid-19, alguns voluntários também se
resguardam, correndo estes animais o risco de ficarem “completamente
desprotegidos”.
“Grande parte dos cuidadores eram pessoas mais
idosas que têm agora de se recolher. Estes animais errantes ficaram sem esse
cuidado”, confirma Maria Pinto Teixeira. A Animais de Rua conseguiu, até agora,
cuidar de cerca de 20 colónias que eram assumidas por estas pessoas, mas a
gestão é complexa.
Desde logo porque o alimento deverá começar a
escassear em breve. Por temer esse futuro mesmo à porta, a associação está já a
fazer um apelo à população para que doem ração ou façam donativos (contactando
a Animais de Rua por email). Além da alimentação destes animais
errantes, está ainda a ser prestado apoio a pessoas de quarentena que não
conseguem comprar comida para os seus animais.
Não é a única. Depois de um inquérito a 230
associações, a Animalife conclui que os donativos caíram drasticamente e a
ração começa já a faltar. Para almofadar o problema, foi criada a Plataforma Solidária Animal:
além de recolher donativos, prometem, entre outras coisas, ajudar doentes com
covid-19 e sem capacidade para cuidar dos animais, fazer compras a quem não
possa sair, fazer passeios com os bichos ou ajudar a alimentar colónias.
Canis e gatis sobrelotados
O estado de emergência e o surto de coronavírus fez
também encerrar centros de recolha oficiais e reduziu ao mínimo os centros de
atendimento veterinário. “Isto limita muito a nossa actividade no terreno.” Por
esta altura, explica Maria Pinto Teixeira, a Animais de Rua deveria estar a
fazer a esterilização de gatos de rua: “Era a altura em que actuávamos em
força.”
Impossibilitada de o fazer, a associação sabe bem o
que virá. Basta pensar que cada fêmea tem, em média, ninhadas de cinco ou seis
animais — e que dessas ninhadas podem nascer outras em poucos
meses. “Tomará dimensões catastróficas num instante”, teme. “Arriscamos
seriamente um descontrolo das colónias.”
À Câmara do Porto, ainda não chegaram ecos deste
problema. Em resposta ao PÚBLICO, o gabinete de comunicação diz ter os serviços
em contacto com as associações. Até agora, a alimentação das colónias de gatos
da cidade corre “sem sobressaltos”, aponta, acrescentando que todos os
cuidadores estão identificados e autorizados a circular para cumprir a sua
missão.
Em Lisboa, a câmara afirma também não ter
conhecimento de qualquer problema na alimentação dos animais das colónias por
si monitorizadas. “As colónias estão identificadas, os cuidadores estão
identificados e munidos de uma declaração da câmara que atesta a sua qualidade
de cuidador, permitindo-lhes deslocar-se para alimentar os animais”, explica a
autarquia. Animais estes que a câmara diz estarem já esterilizados,
notando ainda que tem várias parcerias com associações de bem-estar animal
tendo em vista esta intervenção nos animais.
O município diz ainda que, através da Provedoria
dos Animais de Lisboa e da Casa dos Animais, está em articulação com as
associações de bem-estar animal para poder intervir “quando e se for
necessário”.
Dentro dos canis e dos gatis, a situação pode
também atingir uma dimensão “insustentável”, alerta, por sua vez a Animal.
Segundo a associação, que cita relatos de cidadãos que lhe chegaram, há centros
de recolha oficiais que apenas estão a aceitar bichos “em casos muito extremos
e a não deixar sair animais”. Ora, com o aumento das populações nestes centros,
o cenário da sobrelotação fica mais próximo, colocando em risco as suas
condições de vida, nota a associação num comunicado emitido na semana passada.
Luísa Barroso aproveita a ocasião para criticar a
actuação “de algumas câmaras municipais” (faz questão de não incluir neste lote
a Câmara de Lisboa, com quem trabalha mais directamente) pelo facto de não
colaborarem nas esterilizações a animais errantes ou dos que pertencem a pessoas
com menos posses económicas. Muitos desses animais estão longe de ser um
perigo, mas é importante que sejam esterilizados para que não se reproduzam e
as populações cresçam exponencialmente.
“Os canis estão sobrelotados, mas se as câmaras
tivessem esta iniciativa isso não acontecia. Se os canis municipais pudessem
promover, a custo zero, este tipo de ajudas, o problema dos animais errantes no
nosso país seria muito mais facilmente resolvido”, sublinha.
Na União Zoófila, novas adopções de cães estão suspensas,
mas os processos que já estavam em curso mantêm-se. No caso dos cães, os
futuros donos têm ido até à associação, ficam à porta, e depois vão
passear os animais.
Perante estes tempos de incerteza, Luísa Barroso
diz que tem mantido contacto com a Câmara de Lisboa e com o canil de
Sintra para perceber como podem “aligeirar” futuros problemas de animais com
necessidades. “Tenho medo que a coisa se vá agravar.”
Sem criticar autarquias e outras autoridades, por
entender ser uma situação sem saída, Maria Pinto Teixeira, da Animais de
Rua, pede aos municípios que antecipem desde já o problema e pensem num
reforço das verbas para correr contra o tempo mal seja possível. “É preciso
pensar já no pós[-coronavírus]. É importante planear medidas. Vai haver muito trabalho
a seguir.”
Por Mariana Correia Pinto e Cristiana Faria
Moreira
Fonte e foto : Público / mantida a
grafia lusitana original
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