O ritmo de emissão de licenças para caçadores mais que triplicou
durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, mostra levantamento do G1 em
parceria com o Fantástico. Em 2 anos e 8 meses de gestão, de janeiro de 2019 a
agosto de 2021, o Exército concedeu 193.539 certificados de registro (CRs) para
caçadores no Brasil. É um aumento de 243% em relação aos 56.400 emitidos entre
2016 e 2018.
A caça é proibida no Brasil. A única exceção é o javali. Desde
2013, a legislação autoriza o manejo do animal – ou seja, o abate para evitar
que se reproduza de forma descontrolada, contamine rebanhos de porcos e destrua
plantações. E desde que o animal não sofra maus-tratos.
Hoje existem cerca de 250 mil caçadores legalizados no país.
Como só o manejo do javali é autorizado, todas essas pessoas só têm permissão
para abater este animal.
Investigação do Fantástico mostra que pessoas estão usando o
manejo do javali como pretexto para se armar e praticar a caça esportiva, o que
é proibido.
A equipe de reportagem descobriu que o CR é oferecido por
despachantes e clubes de caça ao redor do país, sem necessidade de saber usar
armas ou ter problemas com javali.
O teste psicológico pode ser feito pela internet, diz. “Se a
pessoa não for louca, consegue passar.” Com o CR, que leva três meses para
sair, o caçador pode encomendar o armamento.
A liberação da caça é uma das promessas de campanha de Jair
Bolsonaro. Desde que ele assumiu a presidência, o governo federal já publicou
37 decretos, portarias e projetos de lei que facilitam o acesso a armas e
reduzem a fiscalização dos Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs). A
Justiça barrou várias dessas medidas.
Vários beneficiaram diretamente os caçadores, como o decreto que
permite a eles a posse de 30 armas, sendo 15 de uso restrito, como fuzis.
Cada caçador pode comprar também até 90 mil munições por ano.
Para ter uma ideia, isso permite dar 246 tiros por dia, todos os dias do ano.
“Haja
javali para que todos esses tiros sejam gastos com esse manejo”, diz Ivan
Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “É mais uma razão para essa
atividade ser bem regulada e bem fiscalizada. Coisa que hoje nós sabemos que
não acontece.”
Antes de ir atrás do javali, o caçador também precisa do
certificado de registro das armas de fogo e de autorizações do Ibama e do dono
da fazenda que estaria tendo prejuízo por causa do animal.
Com a guia de tráfego, outro documento expedido pelo Exército, o
caçador fica liberado para transportar armas e munições até os locais de
manejo.
“Você pode ir do Rio Grande do Norte até aqui no Rio Grande do
Sul. Onde tiver javali, você pode ir. Não tem problema nenhum”, afirma um
despachante.
A equipe de reportagem descobriu que vários caçadores que vivem
nas cidades vão para o interior só para atirar. Iniciantes chegam a gastar até
R$ 100 mil num kit, que inclui documentação, viagem, cachorros, roupas
temáticas, armamentos e munição.
“Um problema que deveria ser concentrado ao campo, em
determinadas regiões específicas, e que acaba gerando um salvo conduto, uma
verdadeira possibilidade de liberação de armas para aquele que se cadastra como
caçador”, diz Marques, do FBSP.
Expansão dos javalis
e caça esportiva
Não existem estatísticas sobre a quantidade exata de javalis no
Brasil ou o prejuízo que causam. Mas os especialistas são unânimes em dizer que
a espécie deve ser controlada.
A caça deveria ser um dos principais métodos de controle, mas o
aumento do número de caçadores não está se refletindo em uma redução dos
javalis no país. Pelo contrário. O animal só está se espalhando.
Em 2016, havia javalis em 563 municípios brasileiros, segundo
levantamento do Ibama. Em 2019, o número quase triplicou. Os animais apareceram
em 1.536 municípios.
Em vez de controlar a expansão do animal, alguns caçadores
estão, inclusive, espalhando o javali pelo país de forma ilegal.
O ritmo de expansão do javali no Brasil é bem maior que o
registrado em países vizinhos. É 11 vezes maior que o do Uruguai, por exemplo,
por onde a espécie foi introduzida no país.
Muitas licenças,
poucos abates
Só entre janeiro e agosto deste ano, já foram emitidos 75.289 CRs
de caçador. Mesmo antes de terminar o ano, já é um recorde. Mais do que em
qualquer um dos últimos cinco anos completos.
Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que as
licenças são concedidas mesmo em áreas em que o registro de abates é muito
baixo.
Na área da 7ª Região Militar, por exemplo, que
engloba os estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, o
Exército concedeu 1.981 CRs de caçadores em 2020. Segundo relatórios do Ibama,
foram abatidos apenas 10 javalis naquela região no ano passado.
O mesmo acontece na 12ª RM (Amazonas, Acre, Roraima
e Rondônia). Foram emitidos 1.864 CRs e abatidos 6 javalis.
Na 2ª RM, de São Paulo, um dos locais mais afetados
pela praga, foram emitidos 10.411 CRs e abatidos 17.244 javalis.
Armas e política
A caça de javalis se tornou um fenômeno cultural,
com grupos organizados, clubes e influenciadores em redes sociais. Uma das
figuras mais influentes nesse meio é Mardqueu Silvio França Filho, vereador do
PSD e presidente da Câmara Municipal de Monte Azul Paulista, no interior de São
Paulo. Ele é mais conhecido como Samurai Caçador.
“O javali veio assegurar o direito de uso de armas
para nós. Nós temos que usar o subterfúgio de utilizar a palavra manejador”,
afirmou ele nos mês passado durante palestra em um evento de armas em Santa
Catarina.
Nas manifestações do dia 7 de Setembro, Samurai
subiu em carro de som e fez discurso na Avenida Paulista.
“Vamos tirar todos esses malditos que querem fazer
desse Brasil uma ditadura. Nenhum ‘mardito’ vai ficar contra o povo.”
Ao ser entrevistado, ele mudou o tom. “Não
precisamos de nenhum subterfúgio. Nós já estamos com o CR, já estamos com as
nossas armas, independente da existência do javali ou não. Nós estamos fazendo
uma contribuição valorosa ao estado e à população.”
Samurai se diz amigo do deputado federal Eduardo
Bolsonaro, que já participou de caçada e é um dos maiores defensores da
política armamentista do governo.
Eduardo é aliado do advogado Marcos Pollon, o
presidente da Associação Nacional Movimento Pró Armas (Proarmas). Em uma
palestra no começo do mês, Pollon afirmou:
“O direito à legítima defesa, meus amigos, é um
direito natural. Você reage à instrumentalização do país. Você reage à Corte
que está querendo destruir o país. Temos que reagir. Não temos tempo nem espaço
pra ter medo.”
No fim de agosto, Eduardo Bolsonaro e Marcos Pollon
foram recebidos em audiência por Silvinei Vasques, diretor-geral da Polícia
Rodoviária Federal (PRF). Os dois pediram mudanças na fiscalização dos CACs.
Dois dias depois do encontro, a PRF emitiu uma nota
técnica com novas orientações para a abordagem de CACs que estejam nas
estradas.
O Fantástico conversou com vários policiais
rodoviários federais que disseram que esta nota técnica inviabiliza uma
fiscalização mais rigorosa dos CACs. Segundo esses policiais, é praticamente
uma ordem para deixá-los seguir viagem.
A nota ainda permite que caçadores se desloquem
para o local do manejo com arma curta carregada – pronta para atirar –
independentemente do horário e itinerário.
Juristas dizem que isso vai contra uma decisão da
ministra do STF Rosa Weber, que em abril suspendeu por liminar vários trechos
de decretos do governo federal que facilitaram a compra de armas, entre eles o
que permitia que caçadores andassem com arma carregada.
O Fantástico procurou Eduardo Bolsonaro, Marcos
Pollon, o Ibama, o Exército e a direção da Polícia Rodoviária Federal, mas eles
não responderam.
Ameaça à segurança pública
“A gente tem um problema muito sério sendo criado,
em termos de segurança pública”, afirma Melina Risso, do Instituto Igarapé.
“Quanto mais armas em circulação, maior a
violência. Aumento sem controle, na verdade, é uma receita pro desastre.”
Ao todo, existem hoje mais de 670 mil armas
registradas nas mãos dos CACs.
Segundo Melina, este tipo de facilitação pode
acabar gerando grupos armados, paramilitares, no Brasil.
“Você abre a perspectiva de que isso aconteça. A
gente tem de fato uma preocupação muito grande em relação à quantidade de armas
e efetivamente quem são esses grupos que estão se armando.”
Atualmente, há 77.821 armas registradas por
caçadores no país, sendo 80% espingardas, carabinas ou fuzis.
“Vamos imaginar um dia em que o javali não seja
mais um problema no Brasil. O Exército vai recolher essa arma? Vai retirar a
licença dessas pessoas? Ou seja, o Brasil vai criando situações em que acaba
sendo muito difícil voltar atrás”, afirma Ivan Marques, do FBSP.
Por André Maciel,
Arthur Guimarães, Felipe Grandin e Vladimir Netto, G1 e Fantástico
Fonte e fotos: G1
Nota do Olhar Animal: Para quem
acompanha o histórico da liberação da caça aos javalis no Brasil, que ocorreu
com a publicação da Instrução Normativa do Ibama de nº 03 de 2013, fica claro
que seu propósito nunca foi o controle populacional e sim foi um ardil para
armar a população visando, entre outras coisas, a liberação indiscriminada da
caça. A permissão para a matança de javalis surge como um “jogo de cena” em
resposta à pressão internacional pelo controle sanitário da pecuária, sem qualquer tipo de estudo que comprove sua
eficácia, estudo que aliás era previsto em instrução normativa anterior,
mas que nunca ocorreu. Ao contrário, após 8 anos, a caça mostra sua absoluta
ineficácia para o controle, com o evidente crescimento da população de javalis,
inclusive provocado por caçadores que espalham os javalis para serem caçados,
como denunciamos meses atrás. Iniciativas legislativas posteriores de liberação
da matança de outras espécies (inclusive em área de proteção) atestam este
propósito. A política armamentista tem vitimado javalis, onças, tatus, macacos
e animais de várias outras espécies, além de oportunizar também o assassinato
de humanos, tornando-se um problema de segurança pública como bem diagnostica a
reportagem do G1.
Em outubro de 2019, a ONG Olhar Animal ajuizou uma
AÇÃO CIVIL PÚBLICA para invalidar a Instrução Normativa nº 03/2013, que libera
a caça aos javalis. Além dos aspectos éticos da caça, questionamos o método
também por sua INEFICIÊNCIA para o controle populacional. A ação foi julgada
improcedente pelo juiz da 2ª Vara Cível Federal de São Paulo no último dia
17/09/2021. A Justiça ignorou provas e argumentos que vão ao encontro do
relatado na reportagem, em especial de que a Instrução Normativa amarra o
controle populacional a um método único, a caça, impedindo a adoção de
alternativas não letais e eficazes. Nenhum dado que comprove a eficiência da
caça como método de controle populacional foi apresentado pelo Ibama no
processo.
Enfim, a caça aos javalis tem servido para
ludibriar a comunidade internacional sobre o controle sanitário (que
lamentavelmente visa favorecer a suinocultura), também para oportunizar a
matança de animais de outras espécies, para armar a população e beneficiar a
indústria do setor alavancando suas vendas, e para permitir que pessoas
externem suas patologias psíquicas se divertindo com o massacre de animais,
tudo de forma legalizada. Um vexame para o Ibama, principal ator desta política
especista, imoral e incompetente.


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