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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Reservas do Cerrado precisam ser protegidas para garantir a sobrevivência dos animais

 

Sharon Guynup (Mongabay) | Tradução Helen Vitória


Imagem ilustrativa: Pixabay

Todo mês de abril, durante seis anos consecutivos, Guilherme Braga Ferreira e três outros pesquisadores partiram em uma jornada de meio ano, instalando metodicamente armadilhas fotográficas remotas em 386 milhas quadradas (quase 1 milhão de quilômetros quadrados do Cerrado brasileiro). O objetivo: fotografar lobos-guará, tamanduás-bandeira, pumas, antas e outros mamíferos neotropicais, residentes nos campos de maior biodiversidade do mundo. Os dados mostrariam onde esses animais viviam e como eles sobreviveram quando viviam perto de humanos.

Ferreira e sua equipe — ecologistas do Instituto Biotrópicos, uma organização conservacionista brasileira sem fins lucrativos — implantaram até 70 câmeras em matrizes cuidadosamente posicionadas, concentradas em nove localidades do sudeste do Cerrado. Os pesquisadores dividem sua vigilância entre parques estaduais e nacionais totalmente protegidos e áreas menos protegidas de “uso misto” onde as pessoas vivem, fazem ranchos e fazendas. Em seguida, eles contaram o número de mamíferos que viviam em cada um e executaram os dados através de um modelo de computador.

No total, os pesquisadores colocaram 517 armadilhas fotográficas em locais onde os mamíferos eram mais prováveis ​​de serem vistos — com cada uma se tornando basicamente uma estação de selfies. Quando um animal passou, ele quebrou o feixe infravermelho do dispositivo, disparou o obturador e tirou sua própria foto.

Os pesquisadores se concentraram em 21 espécies que eram grandes o suficiente para as armadilhas fotográficas registrarem: aquelas pesando pelo menos 33 libras (15 quilos), do tamanho de um pequeno spaniel. (O Cerrado possui mais de 250 mamíferos ao todo, sendo mais de uma dúzia deles endêmicos.) As câmeras documentaram esses animais maiores por uma média de 50 dias por ano de 2012 a 2017, com as filmagens ocorrendo durante a estação seca de abril a outubro. Juntas, as câmeras registraram 26.367 dias de pesquisa.

As imagens forneceram os primeiros dados sobre como os animais estão se saindo em parques estritamente protegidos versus Áreas de Proteção Ambiental (conhecidas como APAs) que, por lei, exigem que pelo menos 20% da área de terra seja deixada intacta, enquanto o restante pode ser usado em uma variedade de meios de subsistência. Os pesquisadores de campo trabalharam com especialistas em conservação, ecologia e análise ambiental para processar os dados, com resultados publicados recentemente na revista Biological Conservation.

A descoberta mais importante: os predadores de topo e os maiores, e mais raros, mamíferos estavam notavelmente ausentes dos APAs: pumas (Puma concolor), antas (Tapirus terrestris), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), lobos-guará (Chrysocyon brachyurus) e ambos os porcos-do-mato queixada e caititu (Tayassu pecari e Pecari tajacu) desapareceram nas áreas de uso misto. Embora as APAs tenham muita vegetação natural e relativamente poucas pessoas, “a probabilidade de encontrar essas espécies grandes e ameaçadas em reservas verdadeiras era de cinco a dez vezes maior”, diz Ferreira, que foi o principal autor do estudo.

Apenas uma espécie vulnerável, a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus), estava mais presente em áreas de ocupação humana. Com exceção do veado-catingueiro (Mazama gouazoubira), todas as 12 espécies que viviam em ambos os parques e áreas semi-desenvolvidas eram animais pequenos. Alguns, incluindo gambás e raposas, são oportunistas que vivem entre os humanos em muitas partes do mundo. Os predadores menores — raposas, jaguatiricas (Leopardus pardalis) e jaguarundi (Herpailurus yagouaroundi) — se deram bem nas APAs por um motivo diferente: eles foram capazes de ocupar nichos anteriormente ocupados por competidores maiores, os agora ausentes lobos-guará e pumas.
No geral, espécies ameaçadas maiores se beneficiaram mais com a proteção rigorosa do que espécies menores não ameaçadas, disse Ferreira. Os parques estaduais e nacionais também abrigam uma variedade muito maior de mamíferos, com muitos mais deles.

Uma paisagem natural em extinção

Muitas espécies de vida selvagem estão em declínio no Cerrado — a savana mais diversa do mundo, contada entre os 35 ‘hotspots’ de biodiversidade do mundo. O bioma é enorme, cobrindo um quarto do Brasil e estendendo-se ao leste e sul da Amazônia. Possui uma impressionante matriz de habitats, incluindo pastagens, paisagens ribeirinhas cobertas de palmeiras, arbustos espinhosos e florestas exuberantes, baixas e sazonalmente secas. Sua vegetação nativa — com mais de 10.000 espécies de plantas — já cobriu dois milhões de quilômetros quadrados; esse é o tamanho da Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Espanha juntas.

Hoje, a maioria é propriedade privada.

Nos últimos 40 anos, metade do Cerrado foi destruído e convertido em fazendas de gado e grandes plantações de soja, milho, algodão e outras culturas, principalmente para exportação. Um grande impulso do agronegócio começou na década de 1980 no sul da região e avançou continuamente para o norte, invadindo comunidades tradicionais e áreas selvagens.

“Primeiro eles derrubariam árvores valiosas e depois queimariam o resto para limpar o terreno”, disse Mercedes MC Bustamante, especialista na região que leciona na Universidade de Brasília. “Era o gado, depois a soja, a cana-de-açúcar e agora é a conversão direta para a soja, que é um uso mais intenso da terra.” Os produtores de soja usam grandes quantidades de pesticidas, enquanto a irrigação em grandes plantações está drenando os aquíferos em uma paisagem seca.

O boom da agricultura do Cerrado tornou o Brasil um produtor e exportador líder de soja e algodão, bem como de carne bovina, que é criada em pastagens plantadas com espécies exóticas de gramíneas. De 1994 a 2002, uma área de savana do tamanho da Bélgica perdeu sua vegetação nativa, seguida por uma destruição ainda maior de habitat desde então. O cultivo de soja no Brasil deve se expandir em 12 milhões de hectares nos próximos 30 anos — principalmente no Cerrado. O medo, diz Bustamante, é que a savana se transforme em um grande pasto e em plantações.

Esse desenvolvimento em grande escala tornou a perda de habitat a maior ameaça que a vida selvagem do Cerrado enfrenta: o que resta hoje é uma colcha de retalhos cada vez mais desconexa. A fragmentação ameaça desproporcionalmente espécie maiores, como as documentadas no estudo, que precisam de um espaço considerável para circular.

Existem outras ameaças também. O desmatamento, por exemplo, faz com que os queixadas desapareçam. Nenhum caititu foi encontrado em terras APA com armadilhas fotográficas. Esses animais peludos semelhantes a porcos também são alvos de caçadores por sua carne, assim como tatus, cutias e outros mamíferos.

“Sabemos que a caça ilegal existe”, diz Ferreira. “Encontramos caçadores ilegais fazendo nosso trabalho de campo, mas como não há dados, ninguém sabe a extensão deles.”

Predadores raramente sobrevivem perto de lugares povoados, e o Cerrado não é exceção. Ferreira observa que fazendeiros e agricultores regularmente atiram em predadores — incluindo pumas e lobos — para impedi-los de matar seus animais.

O estudo recente da armadilha fotográfica foi conduzido em uma parte menos desenvolvida do Cerrado, o Mosaico Sertão Veredas Peruaçu, que oferece algumas áreas protegidas espalhadas por 18.000 quilômetros quadrados no estado de Minas Gerais. A região é isolada, com poucas estradas principais e baixa densidade humana.

As APAs de uso misto permitem o assentamento humano e alguns desmatamentos, mas exigem que pelo menos 20% de suas terras mantenham vegetação nativa, como é o caso em grande parte do Cerrado brasileiro. As áreas especificamente documentadas neste estudo eram cerca de 60% selvagens, então provavelmente havia mais animais lá do que em outras áreas de uso misto com áreas selvagens reduzidas. Em contraste, os proprietários privados na região da Amazônia Legal do Brasil são obrigados a manter 80% de suas propriedades com vegetação nativa. Os proprietários de APAs não são obrigados por lei a garantir a conservação de plantas ou animais.

Embora nem toda a área de estudo fosse savana intocada, parte de seu habitat permanece conectada em uma rede de 25 áreas protegidas dentro do Mosaico Sertão Veredas Peruaçu. Em outras partes do Cerrado que foram ocupadas por grandes plantações de soja e algodão, “Você pode dirigir de duas a três horas sem ver uma árvore”, diz Bustamante. Como essas áreas intensivas do agronegócio são isoladas, é quase impossível para a vida selvagem atravessá-las e a conectividade é perdida.

Protegendo o que resta

Dezessete por cento das terras terrestres do planeta deveriam ser conservadas até 2020 de acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) — um tratado internacional ratificado por 196 nações que governa a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. Embora o Brasil tenha essencialmente atingido esse parâmetro, a maior parte das terras protegidas é a floresta amazônica.

O rico ecossistema da savana também está listado como uma região prioritária, mas apenas 3% está sob proteção estrita. Outros 5% encontram-se em áreas de uso misto. Segundo o acordo internacional, o Cerrado está perdendo cerca de 4,5 milhões de hectares de terras protegidas de savana. Porém, com grande parte da região sob propriedade privada, a criação de novas áreas protegidas exigirá determinação política, diz Bustamante.

Isso é improvável sob o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Seu governo cortou os orçamentos das agências ambientais do país. Enquanto isso, grandes fazendas e o agronegócio estão fazendo lobby para rebaixar, reduzir ou desregulamentar completamente as áreas protegidas.
Ainda assim, a nova pesquisa com mamíferos tem fortes implicações para a política nacional, diz Marcus Rowcliffe, cientista conservacionista da Sociedade Zoológica de Londres e coautor do estudo. “Isso sustenta o caso para as áreas protegidas.”

Ferreira destacou os muitos argumentos para proteger os grandes mamíferos: como eles precisam de um espaço substancial para sobreviver, diz ele, protegê-los conserva toda a teia de vida da região.
A perda dessas espécies já está começando a destruir a rede ecológico geral do bioma. Sem cutias e outras espécies que dispersam sementes, por exemplo, a mistura da vegetação nativa está mudando. Sem os lobos-guará, os roedores não são controlados. O declínio dos queixadas, que cavam e reviram o solo, resulta na perda dos compostores presentes na natureza.

Essas mudanças têm significados além da biodiversidade. O Cerrado armazena muito carbono, ressalta Ferreira. Ele a chama de “a floresta de cabeça para baixo” porque as raízes velhas e profundas são pelo menos três vezes maiores que os arbustos e árvores acima do solo. Essas raízes armazenam grandes quantidades de carbono ao mesmo tempo que ajudam a repor e reter as águas subterrâneas. O Cerrado é conhecido como “o berço das águas”: seus rios e aquíferos fornecem água limpa e doce para grande parte do país.

Tanto os verdadeiros parques quanto os APAs de uso misto estão ajudando a proteger o que resta ao conter o desmatamento ilegal e vivenciando algum grau de controle do fogo. No entanto, maior atenção será necessária no futuro para se proteger contra o número crescente de incêndios: O Cerrado é historicamente um bioma sujeito a incêndios, mas as mudanças climáticas aumentaram a frequência e a intensidade das secas. As chamas anuais liberam grandes cargas de carbono e deixam para trás ecossistemas empobrecidos.

Salvar os mamíferos do Cerrado e outros animais selvagens vai exigir uma caixa de ferramentas, diz Ferreira, incluindo monitoramento da população e fiscalização da saúde genética. As estratégias de conservação incluem a criação de parques mais protegidos, especialmente no norte florestal que está sendo rapidamente destruído para plantações de soja em uma região dominada pelo agronegócio conhecida como MATOPIBA, uma abreviatura dos estados brasileiros do *Ma*ranhão, *To*cantins, *Pi*auí e *Ba*hia. A conservação também precisa acontecer fora de áreas primitivas, diz ele, com cientistas e produtores agrícolas colaborando para projetar áreas de uso misto mais eficazes que conectem áreas naturais e protejam melhor os animais.

Bustamante destacou a urgência: “Não podemos esperar 10 a 20 anos. Se continuarmos como estamos, teremos apenas pequenas ilhas selvagens e grandes monoculturas. O Cerrado terá acabado. ”

Fonte: anda.jor.br

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