Sharon Guynup (Mongabay) | Tradução Helen
Vitória
Imagem ilustrativa: Pixabay
Todo mês
de abril, durante seis anos consecutivos, Guilherme Braga Ferreira e três
outros pesquisadores partiram em uma jornada de meio ano, instalando
metodicamente armadilhas fotográficas remotas em 386 milhas quadradas (quase 1
milhão de quilômetros quadrados do Cerrado brasileiro). O objetivo: fotografar
lobos-guará, tamanduás-bandeira, pumas, antas e outros mamíferos neotropicais,
residentes nos campos de maior biodiversidade do mundo. Os dados mostrariam
onde esses animais viviam e como eles sobreviveram quando viviam perto de
humanos.
Ferreira
e sua equipe — ecologistas do Instituto Biotrópicos, uma organização
conservacionista brasileira sem fins lucrativos — implantaram até 70 câmeras em
matrizes cuidadosamente posicionadas, concentradas em nove localidades do
sudeste do Cerrado. Os pesquisadores dividem sua vigilância entre parques
estaduais e nacionais totalmente protegidos e áreas menos protegidas de “uso
misto” onde as pessoas vivem, fazem ranchos e fazendas. Em seguida, eles
contaram o número de mamíferos que viviam em cada um e executaram os dados
através de um modelo de computador.
No total,
os pesquisadores colocaram 517 armadilhas fotográficas em locais onde os
mamíferos eram mais prováveis de serem vistos — com cada uma se tornando
basicamente uma estação de selfies. Quando um animal passou, ele quebrou o
feixe infravermelho do dispositivo, disparou o obturador e tirou sua própria
foto.
Os
pesquisadores se concentraram em 21 espécies que eram grandes o suficiente para
as armadilhas fotográficas registrarem: aquelas pesando pelo menos 33 libras
(15 quilos), do tamanho de um pequeno spaniel. (O Cerrado possui mais de 250
mamíferos ao todo, sendo mais de uma dúzia deles endêmicos.) As câmeras documentaram
esses animais maiores por uma média de 50 dias por ano de 2012 a 2017, com as
filmagens ocorrendo durante a estação seca de abril a outubro. Juntas, as
câmeras registraram 26.367 dias de pesquisa.
As
imagens forneceram os primeiros dados sobre como os animais estão se saindo em
parques estritamente protegidos versus Áreas de Proteção Ambiental (conhecidas
como APAs) que, por lei, exigem que pelo menos 20% da área de terra seja
deixada intacta, enquanto o restante pode ser usado em uma variedade de meios
de subsistência. Os pesquisadores de campo trabalharam com especialistas em
conservação, ecologia e análise ambiental para processar os dados, com
resultados publicados recentemente na revista Biological Conservation.
A
descoberta mais importante: os predadores de topo e os maiores, e mais raros,
mamíferos estavam notavelmente ausentes dos APAs: pumas (Puma concolor),
antas (Tapirus terrestris), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga
tridactyla), lobos-guará (Chrysocyon brachyurus) e ambos os
porcos-do-mato queixada e caititu (Tayassu pecari e Pecari
tajacu) desapareceram nas áreas de uso misto. Embora as APAs tenham muita
vegetação natural e relativamente poucas pessoas, “a probabilidade de encontrar
essas espécies grandes e ameaçadas em reservas verdadeiras era de cinco a dez
vezes maior”, diz Ferreira, que foi o principal autor do estudo.
Apenas
uma espécie vulnerável, a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus), estava
mais presente em áreas de ocupação humana. Com exceção do veado-catingueiro (Mazama
gouazoubira), todas as 12 espécies que viviam em ambos os parques e áreas
semi-desenvolvidas eram animais pequenos. Alguns, incluindo gambás e raposas,
são oportunistas que vivem entre os humanos em muitas partes do mundo. Os
predadores menores — raposas, jaguatiricas (Leopardus pardalis) e
jaguarundi (Herpailurus yagouaroundi) — se deram bem nas APAs por um
motivo diferente: eles foram capazes de ocupar nichos anteriormente ocupados
por competidores maiores, os agora ausentes lobos-guará e pumas.
No geral, espécies ameaçadas maiores se beneficiaram mais com a proteção
rigorosa do que espécies menores não ameaçadas, disse Ferreira. Os parques
estaduais e nacionais também abrigam uma variedade muito maior de mamíferos,
com muitos mais deles.
Uma
paisagem natural em extinção
Muitas
espécies de vida selvagem estão em declínio no Cerrado — a savana mais diversa
do mundo, contada entre os 35 ‘hotspots’ de biodiversidade do mundo. O bioma é
enorme, cobrindo um quarto do Brasil e estendendo-se ao leste e sul da
Amazônia. Possui uma impressionante matriz de habitats, incluindo pastagens,
paisagens ribeirinhas cobertas de palmeiras, arbustos espinhosos e florestas
exuberantes, baixas e sazonalmente secas. Sua vegetação nativa — com mais de
10.000 espécies de plantas — já cobriu dois milhões de quilômetros quadrados;
esse é o tamanho da Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Espanha juntas.
Hoje, a
maioria é propriedade privada.
Nos
últimos 40 anos, metade do Cerrado foi destruído e convertido em fazendas de
gado e grandes plantações de soja, milho, algodão e outras culturas,
principalmente para exportação. Um grande impulso do agronegócio começou na
década de 1980 no sul da região e avançou continuamente para o norte, invadindo
comunidades tradicionais e áreas selvagens.
“Primeiro
eles derrubariam árvores valiosas e depois queimariam o resto para limpar o
terreno”, disse Mercedes MC Bustamante, especialista na região que leciona na
Universidade de Brasília. “Era o gado, depois a soja, a cana-de-açúcar e agora
é a conversão direta para a soja, que é um uso mais intenso da terra.” Os
produtores de soja usam grandes quantidades de pesticidas, enquanto a irrigação
em grandes plantações está drenando os aquíferos em uma paisagem seca.
O boom da
agricultura do Cerrado tornou o Brasil um produtor e exportador líder de soja e
algodão, bem como de carne bovina, que é criada em pastagens plantadas com
espécies exóticas de gramíneas. De 1994 a 2002, uma área de savana do tamanho
da Bélgica perdeu sua vegetação nativa, seguida por uma destruição ainda maior
de habitat desde então. O cultivo de soja no Brasil deve se expandir em 12
milhões de hectares nos próximos 30 anos — principalmente no Cerrado. O medo,
diz Bustamante, é que a savana se transforme em um grande pasto e em plantações.
Esse
desenvolvimento em grande escala tornou a perda de habitat a maior ameaça que a
vida selvagem do Cerrado enfrenta: o que resta hoje é uma colcha de retalhos
cada vez mais desconexa. A fragmentação ameaça desproporcionalmente espécie
maiores, como as documentadas no estudo, que precisam de um espaço considerável
para circular.
Existem
outras ameaças também. O desmatamento, por exemplo, faz com que os queixadas
desapareçam. Nenhum caititu foi encontrado em terras APA com armadilhas
fotográficas. Esses animais peludos semelhantes a porcos também são alvos de
caçadores por sua carne, assim como tatus, cutias e outros mamíferos.
“Sabemos
que a caça ilegal existe”, diz Ferreira. “Encontramos caçadores ilegais fazendo
nosso trabalho de campo, mas como não há dados, ninguém sabe a extensão deles.”
Predadores
raramente sobrevivem perto de lugares povoados, e o Cerrado não é exceção.
Ferreira observa que fazendeiros e agricultores regularmente atiram em
predadores — incluindo pumas e lobos — para impedi-los de matar seus animais.
O estudo
recente da armadilha fotográfica foi conduzido em uma parte menos desenvolvida
do Cerrado, o Mosaico Sertão Veredas Peruaçu, que oferece algumas áreas
protegidas espalhadas por 18.000 quilômetros quadrados no estado de Minas Gerais.
A região é isolada, com poucas estradas principais e baixa densidade humana.
As APAs
de uso misto permitem o assentamento humano e alguns desmatamentos, mas exigem
que pelo menos 20% de suas terras mantenham vegetação nativa, como é o caso em
grande parte do Cerrado brasileiro. As áreas especificamente documentadas neste
estudo eram cerca de 60% selvagens, então provavelmente havia mais animais lá
do que em outras áreas de uso misto com áreas selvagens reduzidas. Em
contraste, os proprietários privados na região da Amazônia Legal do Brasil são
obrigados a manter 80% de suas propriedades com vegetação nativa. Os
proprietários de APAs não são obrigados por lei a garantir a conservação de
plantas ou animais.
Embora
nem toda a área de estudo fosse savana intocada, parte de seu habitat permanece
conectada em uma rede de 25 áreas protegidas dentro do Mosaico Sertão Veredas
Peruaçu. Em outras partes do Cerrado que foram ocupadas por grandes plantações
de soja e algodão, “Você pode dirigir de duas a três horas sem ver uma árvore”,
diz Bustamante. Como essas áreas intensivas do agronegócio são isoladas, é
quase impossível para a vida selvagem atravessá-las e a conectividade é
perdida.
Protegendo
o que resta
Dezessete
por cento das terras terrestres do planeta deveriam ser conservadas até 2020 de
acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) — um tratado
internacional ratificado por 196 nações que governa a conservação e o uso
sustentável da biodiversidade. Embora o Brasil tenha essencialmente atingido esse
parâmetro, a maior parte das terras protegidas é a floresta amazônica.
O rico
ecossistema da savana também está listado como uma região prioritária, mas
apenas 3% está sob proteção estrita. Outros 5% encontram-se em áreas de uso
misto. Segundo o acordo internacional, o Cerrado está perdendo cerca de 4,5
milhões de hectares de terras protegidas de savana. Porém, com grande parte da
região sob propriedade privada, a criação de novas áreas protegidas exigirá
determinação política, diz Bustamante.
Isso é
improvável sob o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Seu governo cortou
os orçamentos das agências ambientais do país. Enquanto isso, grandes fazendas
e o agronegócio estão fazendo lobby para rebaixar, reduzir ou desregulamentar
completamente as áreas protegidas.
Ainda assim, a nova pesquisa com mamíferos tem fortes implicações para a
política nacional, diz Marcus Rowcliffe, cientista conservacionista da
Sociedade Zoológica de Londres e coautor do estudo. “Isso sustenta o caso para
as áreas protegidas.”
Ferreira
destacou os muitos argumentos para proteger os grandes mamíferos: como eles
precisam de um espaço substancial para sobreviver, diz ele, protegê-los
conserva toda a teia de vida da região.
A perda dessas espécies já está começando a destruir a rede ecológico geral do
bioma. Sem cutias e outras espécies que dispersam sementes, por exemplo, a
mistura da vegetação nativa está mudando. Sem os lobos-guará, os roedores não
são controlados. O declínio dos queixadas, que cavam e reviram o solo, resulta
na perda dos compostores presentes na natureza.
Essas
mudanças têm significados além da biodiversidade. O Cerrado armazena muito
carbono, ressalta Ferreira. Ele a chama de “a floresta de cabeça para baixo”
porque as raízes velhas e profundas são pelo menos três vezes maiores que os
arbustos e árvores acima do solo. Essas raízes armazenam grandes quantidades de
carbono ao mesmo tempo que ajudam a repor e reter as águas subterrâneas. O
Cerrado é conhecido como “o berço das águas”: seus rios e aquíferos fornecem água
limpa e doce para grande parte do país.
Tanto os
verdadeiros parques quanto os APAs de uso misto estão ajudando a proteger o que
resta ao conter o desmatamento ilegal e vivenciando algum grau de controle do
fogo. No entanto, maior atenção será necessária no futuro para se proteger
contra o número crescente de incêndios: O Cerrado é historicamente um bioma
sujeito a incêndios, mas as mudanças climáticas aumentaram a frequência e a
intensidade das secas. As chamas anuais liberam grandes cargas de carbono e
deixam para trás ecossistemas empobrecidos.
Salvar os
mamíferos do Cerrado e outros animais selvagens vai exigir uma caixa de
ferramentas, diz Ferreira, incluindo monitoramento da população e fiscalização
da saúde genética. As estratégias de conservação incluem a criação de parques
mais protegidos, especialmente no norte florestal que está sendo rapidamente
destruído para plantações de soja em uma região dominada pelo agronegócio
conhecida como MATOPIBA, uma abreviatura dos estados brasileiros do *Ma*ranhão,
*To*cantins, *Pi*auí e *Ba*hia. A conservação também precisa acontecer fora de
áreas primitivas, diz ele, com cientistas e produtores agrícolas colaborando
para projetar áreas de uso misto mais eficazes que conectem áreas naturais e
protejam melhor os animais.
Bustamante
destacou a urgência: “Não podemos esperar 10 a 20 anos. Se continuarmos como
estamos, teremos apenas pequenas ilhas selvagens e grandes monoculturas. O
Cerrado terá acabado. ”
Fonte: anda.jor.br
Acesse no www.mundoanimalmaceio.com.br
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