Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal), Brasília - DF.
A crueldade não se
regulamenta, se proíbe. Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal quando
do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.983 em outubro de 2016, onde a
maioria dos Ministros decidiram pela inconstitucionalidade da Lei nº 15.299/2013
do Estado do Ceará que regulamentava a chamada vaquejada.
A tese fixada em
defesa dos animais foi a da crueldade
intrínseca ou manifesta existente nessa prática, ainda que seja ela
entendida como manifestação cultural de um povo ou de um grupo social.
A prática nitidamente violenta consiste no uso de
animais (bois e cavalos) como forma de entretenimento humano e para obtenção de
vantagem financeira de seus organizadores da seguinte maneira: uma dupla de
vaqueiros, montados em cavalos distintos, saem em disparada na perseguição de
um boi para derrubá-lo, puxando-o pelo rabo para que caia dentro de área
demarcada com as quatro patas para cima, momento em que o peão marca a
pontuação.
Os Ministros do STF
decidiram majoritariamente a favor dos animais em uma votação apertada (6 x 5)
dando aplicação ao texto constitucional que proíbe a submissão dos animais à
crueldade, no reconhecimento de sua integridade física e mental que devem ser resguardadas pelo
Poder Público para além da tutela
ambiental de que também goza todo ser vivo, seja esse ser humano ou
(animal) não humano.
Destaque-se um
pequeno trecho do voto do Ministro Luís Roberto Barroso “a vedação de
práticas que submetam animais a crueldade, prevista no art. 225, § 1º, VII, da
Constituição Federal, constitui proteção constitucional autônoma, devendo-se
resguardar os animais contra atos cruéis independentemente de haver
consequências para o meio-ambiente, para a função ecológica da fauna ou para a
preservação das espécies”.
Durante o
julgamento da ação judicial, também ficou evidenciada a existência de tortura prévia praticada contra
esses animais antes do início da vaquejada propriamente dita “inclusive
por meio de estocadas de choques elétricos – à qual é submetido o animal, para
que saia do estado de mansidão e dispare em fuga a fim de viabilizar a
perseguição”.
Foto: Jornal da Paraíba / Folhapress
Segundo trecho do acórdão, laudos periciais
demonstraram as consequências nocivas “à saúde dos bovinos decorrentes da
tração forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas,
ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da
articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no comprometimento
da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental”.
Ainda há menção de estudos no sentido de “também sofrerem lesões e danos
irreparáveis os cavalos utilizados na atividade: tendinite, tenossinovite,
exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica”.
Na citada decisão também
se reconheceu a configuração do crime
de maus-tratos na vaquejada (conduta
tipificada pelo artigo 32 da Lei Federal criminal de nº 9.605/98), restando
evidenciado pela Corte Constitucional de que mesmo realizada dentro do contexto de manifestações culturais não
retira o dever do Poder Público de proteger os animais de tais práticas cruéis
(inerentes à vaquejada), entendimento compartilhado, inclusive, pelo então
Advogado-Geral da União e pelo Procurador-Geral da República.
Como lembrado
durante o julgamento da ADI nº 4.983, nos casos de colisão entre as normas
constitucionais que envolvem, de um lado, a proteção de manifestações culturais
(art. 215, caput e § 1º) e, de outro, a proteção dos animais contra o
tratamento cruel (art. 225, § 1º, VII), a jurisprudência do STF “tem
sido firme no sentido de interditar manifestações culturais que importem
crueldade contra animais”, indo nessa linha o Recurso Extraordinário nº
153.531/SC (julgado em junho de 1997 sobre a denominada “farra
do boi”), as Ações Diretas de
Inconstitucionalidade nºs 2.514/SC e 3.776/RN (referente
as “brigas de galos”, julgadas em junho de 2005 e junho de 2007,
respectivamente) e mais uma ADI sobre lei do estado do Rio de Janeiro que
autorizava “briga de galos” de nº 1.856 (julgada em
maio de 2011).
Como já abordamos
em diversos momentos no Saber
Animal, os Direitos Animais podem e devem ser garantidos especialmente
sob a ótica constitucional, inclusive perante os Tribunais Superiores como se
vê nestes julgamentos paradigmáticos.
Já alertamos que o Poder Legislativo, atuante que
tem sido no sentido contrário da proteção animal (até mesmo quando alguns de
seus membros alegam estarem agindo pela “causa animal”) também encontra
ressonância no oportunismo ou no analfabetismo político e/ou jurídico, e não
raras as vezes, acabam por legislar para cravar o retrocesso dos Direitos
Animais na própria Constituição Federal.
O constituinte brasileiro fez a
inegável opção ética de reconhecer o seu interesse mais primordial: o interesse
de não sofrer quando esse sofrimento puder ser evitado. (Ministro Luís Roberto
Barroso, julgamento da ADI nº 4.983/2016).
Tão logo a mais
alta corte do Poder Judiciário deu posicionamento de vanguarda na ação da
vaquejada (ADI nº 4.983) ao reconhecer a crueldade inerente da famigerada manifestação humana dita
cultural ou desportiva, pecuaristas e seus políticos articularam imediatamente
no Congresso Nacional uma forma de tentar “derrubar” tão significativa e
importantíssima decisão judicial. Tal articulação se deu durante o governo
golpista do ex-presidente Michel Temer, embora, a bem da verdade, também
pudesse ser durante o governo Dilma Rousseff – que, aliás, reconheceu através
da Lei Federal nº 12.870/2013 a
profissão de vaqueiro, o qual passou a ter como uma de suas atribuições o
“treinamento e preparação de animais para eventos culturais e socioesportivos”.
A realidade se mostra bem diferente do que foi escrito
na citada Lei Federal sancionada por Dilma Rousseff que também tentou
regulamentar o tão falado bem-estar animal. É factualmente impossível que
alguém possa garantir que os animais envolvidos na vaquejada não sejam
submetidos a atos de violência exatamente porque a prática é violenta em si,
antes e durante o evento (violência que se prolonga depois do infeliz
espetáculo onde os animais permanecem ao jugo, ao domínio desses
“esportistas”).
Assim, a toque de
caixa foi aprovada uma Emenda Constitucional (EC nº 96/2017) para
acrescentar um parágrafo ao principal artigo da Constituição que trata da
proteção dos animais de modo a enfraquecê-lo absurdamente com a previsão de
que “práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas
cruéis” atendidas duas condições: 1) serem reconhecidas como
manifestações culturais uma vez registradas como bem de natureza imaterial
integrante do patrimônio cultural brasileiro e 2) serem regulamentadas por lei
específica que assegure o chamado bem-estar dos animais envolvidos.
Essa disparatada
Emenda foi alvo de nova ação judicial (ADI nº 5.728) no STF,
cujo julgamento está marcado para o próximo dia 5 de novembro.
Poucos dias depois
de entrar em vigor a alteração constitucional, teci algumas considerações no
artigo “Divertimento e dinheiro às custas
do sofrimento animal na vaquejada e práticas congêneres? Jamais!” fazendo
apontamentos um tanto óbvios, se usarmos de franqueza, acerca dessa aberração
jurídica criada pela Emenda 96 que brevemente será enfrentada pelo Supremo
Tribunal Federal. Nessa oportunidade, também busquei chamar a atenção das
leitoras e leitores para o fato de que denúncias sobre a prática da vaquejada
deveriam (e devem – independentemente do que venha a ser decidido no próximo
julgamento) continuar sendo direcionadas para os órgãos competentes (Ministério
Público) e eventuais órgãos municipais, como forma de pressão social,
prestigiando-se naquela ocasião a decisão da Suprema Corte brasileira que
mandou o Poder Público observar e respeitar a proteção dos animais, os seus
direitos fundamentais.
Nesse ambiente de novos valores e de
novas percepções, o STF tem feito cumprir a opção ética dos constituintes de
proteger os animais contra práticas que os submetam a crueldade, em uma
jurisprudência constante e que merece ser preservada. (Ministro Luís Roberto
Barroso, julgamento da ADI nº 4.983/2016).
Espera-se que a decisão de vanguarda dos
magistrados brasileiros que, em 2016, reconheceram a manifesta crueldade contra
os bois e cavalos envolvidos nessa atividade lamentavelmente festiva para seres
humanos participantes (lamentável porque causadora de sofrimento atroz aos
seres de outras espécies, em especial aos bois que não aderem voluntariamente
ao dito esporte) seja ratificada, reafirmada, vez que praticamente irretocáveis
os votos favoráveis tanto do ponto de vista legal / constitucional quanto do
ponto de vista ético ou moral. Pede-se, implora-se igual discernimento e
justiça para a procedência dessa nova ADI nº 5.728 a fim de que seja eliminada
a autorização de violência e aviltamento dos animais na Constituição trazida
pelo esdrúxulo parágrafo 7º do artigo 225!
Os animais são portadores de dignidade e sujeitos
de direitos perante o sistema jurídico e já reconhecidos como tal perante os
Tribunais Superiores brasileiros.
E, claro, espera-se a mesma clareza por parte
daqueles “defensores de animais” que acabam jogando no “time” errado. Dirijo-me
aos que parecem trabalhar, incessantemente, pela regulamentação de práticas
exploratórias. Aqueles(as) que buscam a perpetuação do utilitarismo dos animais
na sociedade não podem ser considerados defensores dos animais não humanos,
tampouco dos direitos animais. Magistrados e até mesmo ministros do STF já
sinalizaram entender essa diferença.
Como muito bem
colocado pelo ministro Barroso, no caso da vaquejada “torna-se
impossível a regulamentação de modo a evitar a crueldade sem a
descaracterização da própria prática”. Faltou avisar para esses
integrantes da chamada “proteção animal” da atualidade que preferem lutar por
leis regulamentadoras do bem-estar humano ao invés de lutarem pelos animais,
efetivamente.
A propósito, isso
me fez lembrar que, dia desses, um desconhecido (que prontamente pude
identificar como professor de Direito e defensor de cães – ou talvez apenas do
dele próprio) me enviou mensagem via direct do Instagram
alertando-me sobre uma conduta “imprudente” de minha parte! Aparentemente
incomodado com minha categórica e contumaz afirmação de que “todo animal é
sujeito de direitos no Brasil”, ele lançou: “acho temerária esta afirmação pois
não é correta, ainda”. Uau! Que temerário, hein!? Eu pensei que “temerário” (no
sentido negativo do termo) fosse apoiar práticas exploratórias se apresentando
como defensor de animais! E por acaso, essa visão progressista (que, por sinal,
não é apenas minha), não compete ser propagada, multiplicada, disseminada,
especialmente pelos animalistas abolicionistas?
Se o animal “não
é, ainda”, sujeito de direitos (desconsiderando-se abertamente todo o
avanço legislativo e principalmente o judicial), quando é que será, afinal?
Quando ele ou “eles” (homens, professores universitários…) assim bem
entenderem? Ora, na minha simples visão (e experiência jurídica, é claro),
penso que deveríamos, na causa animal, lutar a favor dos interesses e dos
direitos dos animais e não contra, como fazem os seus usadores e exploradores…
Quem, em sã consciência, advogaria contra o seu próprio cliente? Acabei não respondendo
nada para o pacato cidadão, confesso que me deu preguiça de argumentar, o que
acabei por fazer nesta ocasião, considerando que o sujeito (e quiçá tantos
outros sujeitos que tenham o mesmo pensamento) possa ou possam vir a ler (ah
sim, alguns arqueiam a sobrancelha mas me leem, então resta a esperança de uma
verdadeira comoção para que passem a defender os animais, de fato).
Bem, voltando para o julgamento da ADI nº 5.728 que
se avizinha no STF sobre a vaquejada, notadamente a inconstitucionalidade da
exceção inserida na Constituição Federal que autoriza a crueldade contra
animais ao despudorado argumento que se trata de um “esporte” ou de prática
“cultural”, transcrevo uma fala da Ministra Rosa Weber (STF) que certamente
denota e exemplifica o protagonismo das mulheres na luta pela emancipação dos
animais:
A Constituição, no seu artigo 225, §
1º, VII, acompanha o nível de esclarecimento alcançado pela humanidade no
sentido de superação da limitação antropocêntrica que coloca o homem no centro
de tudo e todo o resto como instrumento a seu serviço, em prol do
reconhecimento de que os animais possuem uma dignidade própria que deve ser
respeitada. O bem protegido pelo inciso VII do § 1º do artigo 225 da
Constituição, enfatizo, possui matriz biocêntrica, dado que a Constituição
confere valor intrínseco às formas de vida não humanas e o modo escolhido pela
Carta da República para a preservação da fauna e do bem-estar do animal foi a
proibição expressa de conduta cruel, atentatória à integridade dos animais.
(Ministra Rosa Weber, julgamento da ADI nº 4.983/2016).
A citação acima dá a tônica de uma nova era de
entendimento acerca da crueldade praticada contra os animais entre os membros
da mais alta corte do Judiciário brasileiro, o qual precisa ser fortalecido e
universalizado para o bem dos animais, para o nosso bem e de toda a sociedade.
Por Vanice Cestari
Fonte: Saber Animal
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