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domingo, 25 de outubro de 2020

Vaquejada como ‘esporte’ ou ‘cultura’: não há como escapar da crueldade


Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal), Brasília - DF.

A crueldade não se regulamenta, se proíbe. Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.983 em outubro de 2016, onde a maioria dos Ministros decidiram pela inconstitucionalidade da Lei nº 15.299/2013 do Estado do Ceará que regulamentava a chamada vaquejada.

A tese fixada em defesa dos animais foi a da crueldade intrínseca ou manifesta existente nessa prática, ainda que seja ela entendida como manifestação cultural de um povo ou de um grupo social.

A prática nitidamente violenta consiste no uso de animais (bois e cavalos) como forma de entretenimento humano e para obtenção de vantagem financeira de seus organizadores da seguinte maneira: uma dupla de vaqueiros, montados em cavalos distintos, saem em disparada na perseguição de um boi para derrubá-lo, puxando-o pelo rabo para que caia dentro de área demarcada com as quatro patas para cima, momento em que o peão marca a pontuação.

Os Ministros do STF decidiram majoritariamente a favor dos animais em uma votação apertada (6 x 5) dando aplicação ao texto constitucional que proíbe a submissão dos animais à crueldade, no reconhecimento de sua integridade física e mental que devem ser resguardadas pelo Poder Público para além da tutela ambiental de que também goza todo ser vivo, seja esse ser humano ou (animal) não humano.

Destaque-se um pequeno trecho do voto do Ministro Luís Roberto Barroso “a vedação de práticas que submetam animais a crueldade, prevista no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, constitui proteção constitucional autônoma, devendo-se resguardar os animais contra atos cruéis independentemente de haver consequências para o meio-ambiente, para a função ecológica da fauna ou para a preservação das espécies”.

Durante o julgamento da ação judicial, também ficou evidenciada a existência de tortura prévia praticada contra esses animais antes do início da vaquejada propriamente dita “inclusive por meio de estocadas de choques elétricos – à qual é submetido o animal, para que saia do estado de mansidão e dispare em fuga a fim de viabilizar a perseguição”.


Foto: Jornal da Paraíba / Folhapress

Segundo trecho do acórdão, laudos periciais demonstraram as consequências nocivas “à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental”. Ainda há menção de estudos no sentido de “também sofrerem lesões e danos irreparáveis os cavalos utilizados na atividade: tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica”.

Na citada decisão também se reconheceu a configuração do crime de maus-tratos na vaquejada (conduta tipificada pelo artigo 32 da Lei Federal criminal de nº 9.605/98), restando evidenciado pela Corte Constitucional de que mesmo realizada dentro do contexto de manifestações culturais não retira o dever do Poder Público de proteger os animais de tais práticas cruéis (inerentes à vaquejada), entendimento compartilhado, inclusive, pelo então Advogado-Geral da União e pelo Procurador-Geral da República.

Como lembrado durante o julgamento da ADI nº 4.983, nos casos de colisão entre as normas constitucionais que envolvem, de um lado, a proteção de manifestações culturais (art. 215, caput e § 1º) e, de outro, a proteção dos animais contra o tratamento cruel (art. 225, § 1º, VII), a jurisprudência do STF “tem sido firme no sentido de interditar manifestações culturais que importem crueldade contra animais”, indo nessa linha o Recurso Extraordinário nº 153.531/SC (julgado em junho de 1997 sobre a denominada “farra do boi”), as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 2.514/SC e 3.776/RN (referente as “brigas de galos”, julgadas em junho de 2005 e junho de 2007, respectivamente) e mais uma ADI sobre lei do estado do Rio de Janeiro que autorizava “briga de galos” de nº 1.856 (julgada em maio de 2011).

Como já abordamos em diversos momentos no Saber Animal, os Direitos Animais podem e devem ser garantidos especialmente sob a ótica constitucional, inclusive perante os Tribunais Superiores como se vê nestes julgamentos paradigmáticos.

Já alertamos que o Poder Legislativo, atuante que tem sido no sentido contrário da proteção animal (até mesmo quando alguns de seus membros alegam estarem agindo pela “causa animal”) também encontra ressonância no oportunismo ou no analfabetismo político e/ou jurídico, e não raras as vezes, acabam por legislar para cravar o retrocesso dos Direitos Animais na própria Constituição Federal.

O constituinte brasileiro fez a inegável opção ética de reconhecer o seu interesse mais primordial: o interesse de não sofrer quando esse sofrimento puder ser evitado. (Ministro Luís Roberto Barroso, julgamento da ADI nº 4.983/2016).

Tão logo a mais alta corte do Poder Judiciário deu posicionamento de vanguarda na ação da vaquejada (ADI nº 4.983) ao reconhecer a crueldade inerente da famigerada manifestação humana dita cultural ou desportiva, pecuaristas e seus políticos articularam imediatamente no Congresso Nacional uma forma de tentar “derrubar” tão significativa e importantíssima decisão judicial. Tal articulação se deu durante o governo golpista do ex-presidente Michel Temer, embora, a bem da verdade, também pudesse ser durante o governo Dilma Rousseff – que, aliás, reconheceu através da Lei Federal nº 12.870/2013 a profissão de vaqueiro, o qual passou a ter como uma de suas atribuições o “treinamento e preparação de animais para eventos culturais e socioesportivos”.

A realidade se mostra bem diferente do que foi escrito na citada Lei Federal sancionada por Dilma Rousseff que também tentou regulamentar o tão falado bem-estar animal. É factualmente impossível que alguém possa garantir que os animais envolvidos na vaquejada não sejam submetidos a atos de violência exatamente porque a prática é violenta em si, antes e durante o evento (violência que se prolonga depois do infeliz espetáculo onde os animais permanecem ao jugo, ao domínio desses “esportistas”).   

Assim, a toque de caixa foi aprovada uma Emenda Constitucional (EC nº 96/2017) para acrescentar um parágrafo ao principal artigo da Constituição que trata da proteção dos animais de modo a enfraquecê-lo absurdamente com a previsão de que “práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis” atendidas duas condições: 1) serem reconhecidas como manifestações culturais uma vez registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro e 2) serem regulamentadas por lei específica que assegure o chamado bem-estar dos animais envolvidos.

Essa disparatada Emenda foi alvo de nova ação judicial (ADI nº 5.728) no STF, cujo julgamento está marcado para o próximo dia 5 de novembro.

Poucos dias depois de entrar em vigor a alteração constitucional, teci algumas considerações no artigo “Divertimento e dinheiro às custas do sofrimento animal na vaquejada e práticas congêneres? Jamais!” fazendo apontamentos um tanto óbvios, se usarmos de franqueza, acerca dessa aberração jurídica criada pela Emenda 96 que brevemente será enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal. Nessa oportunidade, também busquei chamar a atenção das leitoras e leitores para o fato de que denúncias sobre a prática da vaquejada deveriam (e devem – independentemente do que venha a ser decidido no próximo julgamento) continuar sendo direcionadas para os órgãos competentes (Ministério Público) e eventuais órgãos municipais, como forma de pressão social, prestigiando-se naquela ocasião a decisão da Suprema Corte brasileira que mandou o Poder Público observar e respeitar a proteção dos animais, os seus direitos fundamentais.

Nesse ambiente de novos valores e de novas percepções, o STF tem feito cumprir a opção ética dos constituintes de proteger os animais contra práticas que os submetam a crueldade, em uma jurisprudência constante e que merece ser preservada. (Ministro Luís Roberto Barroso, julgamento da ADI nº 4.983/2016).

Espera-se que a decisão de vanguarda dos magistrados brasileiros que, em 2016, reconheceram a manifesta crueldade contra os bois e cavalos envolvidos nessa atividade lamentavelmente festiva para seres humanos participantes (lamentável porque causadora de sofrimento atroz aos seres de outras espécies, em especial aos bois que não aderem voluntariamente ao dito esporte) seja ratificada, reafirmada, vez que praticamente irretocáveis os votos favoráveis tanto do ponto de vista legal / constitucional quanto do ponto de vista ético ou moral. Pede-se, implora-se igual discernimento e justiça para a procedência dessa nova ADI nº 5.728 a fim de que seja eliminada a autorização de violência e aviltamento dos animais na Constituição trazida pelo esdrúxulo parágrafo 7º do artigo 225!

Os animais são portadores de dignidade e sujeitos de direitos perante o sistema jurídico e já reconhecidos como tal perante os Tribunais Superiores brasileiros.

E, claro, espera-se a mesma clareza por parte daqueles “defensores de animais” que acabam jogando no “time” errado. Dirijo-me aos que parecem trabalhar, incessantemente, pela regulamentação de práticas exploratórias. Aqueles(as) que buscam a perpetuação do utilitarismo dos animais na sociedade não podem ser considerados defensores dos animais não humanos, tampouco dos direitos animais. Magistrados e até mesmo ministros do STF já sinalizaram entender essa diferença.

Como muito bem colocado pelo ministro Barroso, no caso da vaquejada “torna-se impossível a regulamentação de modo a evitar a crueldade sem a descaracterização da própria prática”. Faltou avisar para esses integrantes da chamada “proteção animal” da atualidade que preferem lutar por leis regulamentadoras do bem-estar humano ao invés de lutarem pelos animais, efetivamente.

A propósito, isso me fez lembrar que, dia desses, um desconhecido (que prontamente pude identificar como professor de Direito e defensor de cães – ou talvez apenas do dele próprio) me enviou mensagem via direct do Instagram alertando-me sobre uma conduta “imprudente” de minha parte! Aparentemente incomodado com minha categórica e contumaz afirmação de que “todo animal é sujeito de direitos no Brasil”, ele lançou: “acho temerária esta afirmação pois não é correta, ainda”. Uau! Que temerário, hein!? Eu pensei que “temerário” (no sentido negativo do termo) fosse apoiar práticas exploratórias se apresentando como defensor de animais! E por acaso, essa visão progressista (que, por sinal, não é apenas minha), não compete ser propagada, multiplicada, disseminada, especialmente pelos animalistas abolicionistas?

Se o animal “não é, ainda”, sujeito de direitos (desconsiderando-se abertamente todo o avanço legislativo e principalmente o judicial), quando é que será, afinal? Quando ele ou “eles” (homens, professores universitários…) assim bem entenderem? Ora, na minha simples visão (e experiência jurídica, é claro), penso que deveríamos, na causa animal, lutar a favor dos interesses e dos direitos dos animais e não contra, como fazem os seus usadores e exploradores… Quem, em sã consciência, advogaria contra o seu próprio cliente? Acabei não respondendo nada para o pacato cidadão, confesso que me deu preguiça de argumentar, o que acabei por fazer nesta ocasião, considerando que o sujeito (e quiçá tantos outros sujeitos que tenham o mesmo pensamento) possa ou possam vir a ler (ah sim, alguns arqueiam a sobrancelha mas me leem, então resta a esperança de uma verdadeira comoção para que passem a defender os animais, de fato).

Bem, voltando para o julgamento da ADI nº 5.728 que se avizinha no STF sobre a vaquejada, notadamente a inconstitucionalidade da exceção inserida na Constituição Federal que autoriza a crueldade contra animais ao despudorado argumento que se trata de um “esporte” ou de prática “cultural”, transcrevo uma fala da Ministra Rosa Weber (STF) que certamente denota e exemplifica o protagonismo das mulheres na luta pela emancipação dos animais:

A Constituição, no seu artigo 225, § 1º, VII, acompanha o nível de esclarecimento alcançado pela humanidade no sentido de superação da limitação antropocêntrica que coloca o homem no centro de tudo e todo o resto como instrumento a seu serviço, em prol do reconhecimento de que os animais possuem uma dignidade própria que deve ser respeitada. O bem protegido pelo inciso VII do § 1º do artigo 225 da Constituição, enfatizo, possui matriz biocêntrica, dado que a Constituição confere valor intrínseco às formas de vida não humanas e o modo escolhido pela Carta da República para a preservação da fauna e do bem-estar do animal foi a proibição expressa de conduta cruel, atentatória à integridade dos animais. (Ministra Rosa Weber, julgamento da ADI nº 4.983/2016).

A citação acima dá a tônica de uma nova era de entendimento acerca da crueldade praticada contra os animais entre os membros da mais alta corte do Judiciário brasileiro, o qual precisa ser fortalecido e universalizado para o bem dos animais, para o nosso bem e de toda a sociedade.

Por Vanice Cestari

Fonte: Saber Animal

 


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